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22 de abril de 2016

"Em meio à crise, o patriarcado contra-ataca" por Joanna Burigo

Deputados anti-Dilma erguem placas "Tchau, querida": o patriarcado se move (Foto: Antonio Augusto)
O termo realpolitik refere-se à política feita a partir de considerações práticas em detrimento de noções ideológicas, mas o termo é comumente utilizado de forma pejorativa para indicar políticas coercitivas, imorais ou maquiavélicas. 

Proponho um desdobramento do conceito para aplicação no nosso atual cenário político: vivemos a era da surrealpolitik, na qual democracia é o que se quer ainda que alguns dos caminhos para chegar nela sejam antidemocráticos, que as famílias dos parlamentares apareçam como justificativa para votar a favor de um novo governo feito pelo povo, e que uma cusparada dirigida a um defensor declarado da ditadura cause mais ultraje do que seu discurso...

A maior parte da representatividade política global é marcada maciçamente pelo gênero, classe e cor dos candidatos e representantes eleitos. Até aí, nenhuma novidade, e no Brasil a configuração não é diferente: no poder, a maioria é de homens brancos e ricos.

Sabe como as feministas chamam o paradigma que normaliza que instituições de poder sejam regidas por homens? Patriarcado. É o patriarcado que o feminismo denuncia, expõe, critica, resiste, e contra o qual luta.

Frequentemente a palavra “patriarcado” vem seguida de outras palavras, como “heteronormativo” e “branco”. Esta tríade sintetiza um conjunto de estruturas institucionais que organiza nossa sociedade, e que tem outros eixos. Mas o patriarcado heteronormativo branco existe, e é incontestável: basta observar os corpos e discursos de quem ocupa o maior número de assentos nos cargos mais altos de poder político, econômico, simbólico e social.

O feminismo aponta os ritos do patriarcado como quer que eles se manifestem, e a votação acerca da abertura do processo de impedimento de Dilma Rousseff que ocorreu na Câmara no domingo 17 foi indubitavelmente patriarcal.

Na sessão, uma maioria esmagadora de homens brancos, ricos e (ao menos declaradamente) heterossexuais, ofereceu seu sim a um novo governo do povo com discursos contraditoriamente individualistas. Pela minha família, por deus, pelos meus. Pela mesma coisa de sempre. Pelo que é meu.

A proporção de homens e mulheres na sessão, aliada aos valores explicitados nas justificativas, acabou por nos oferecer o espetáculo da transmissão do patriarcado, ao vivo e em rede nacional. E quem assistiu viu: foi mimimi puro. Quanta ironia.

Um dos deputados chegou a declarar o seguinte: “Para me reencontrar com a História, voto sim". Esta fala é muito significativa quando o presidente é uma presidenta. Com o que, exatamente, este senhor quer se reencontrar?

E aquele outro deputado, também branco e muito rico cujos filhos ocupam um sem-fim de cargos políticos, que dedicou seu sim ao golpe de 1964? A cusparada entre homens vira novela de meme e debate do dia. Surrealpolitik patriarcal.

Se o que está se desenvolvendo vai ficar marcado na história como golpe, com dor ou alívio logo ficará certo. Mas um golpe já é certo: este, mais um dos que recebemos do patriarcado heteronormativo branco.

O “tchau, querida” é extensivo a todas nós.

Além dos horrores misóginos, racistas, homofóbicos e fascistas que compuseram uma parte muito significativa dos discursos do sim durante votação, uma profusão de memes jocosos sobre o que acontecia na noite invadiu as redes durante a sessão. 

O meme é a linguagem por excelência das redes sociais, um favorito da internet. Memes são especialmente bons no Brasil, onde fazemos chacota e deboche de tudo, e rapidamente. O compartilhamento de memes durante a votação própria não surpreende, mas dado seus conteúdos e o que ocorria, revelaram-se a falta de atenção e o peso seletivo que se dá para discursos de ódio.

A maior parte da produção feminista sobre política foca em atos e falas misóginas, no poder de significação das palavras, e em alertas sobre discursos de ódio e o que acontece quando eles se materializam.   

Expomos, por coerência, ataques misóginos direcionados a todas as mulheres. Rousseff vem sendo alvo constante de ataques misóginos de toda sorte, mas esta semana mesmo – que semana –  saiu uma matéria na revista Veja sobre Marcela Temer, enaltecendo-a amplamente por ser “bela, recatada e do lar”.

Ela é bela, talvez recato seja seu estilo, e do lar, bom, é elogio, mas isso não é sobre ela, e sim sobre marcar quais são os o espaços onde as boas mulheres pertencem.

Demonstração da permanência do machismo institucionalizado nos meios de comunicação, que elogiam mulheres com adjetivos que denotam subserviência aos valores do patriarcado. Haja #greloduro.

Mulheres não têm equidade política, social e econômica, e coisas como a violência material e simbólica de gênero, ou as barreiras institucionais à nossa autonomia corporal, são formas de manutenção do paradigma patriarcal.

Patriarcado é o sistema, misoginia é a indicação de sua existência, machismos são seus atos. Na linguagem, no simbólico onde circulam informação e poder, encontramos evidências de todos.

A concepção de deus e família invocada na votação, por exemplo, existe no feminismo, e existe lutando para não servir de bandeira para promoção da violência nem manta que a acoberte. Feministas: exposição do patriarcado, sempre de dentro dele, analisando todos os seus códigos.

A conclusão é que a opressão das mulheres é, apesar das diferenças materiais e simbólicas entre culturas, uma constante.  

Imagino que muitos dos que creem que a saída de Rousseff seja o melhor para o País tenham se envergonhado com o que assistiram. A comemoração efusiva do resultado adicionou mais uma camada de surrealismo à nossa política. Visto o que vimos, não parece haver o que celebrar.

Mas venha o que vier, de nossa parte é garantido: seguiremos falando e denunciando, como fazemos há tempo. Seguiremos expondo o patriarcado, sua linguagem, seus códigos, seus instrumentos de propaganda, seus métodos, e suas consequências, apesar de quaisquer binarismos ou surrealpolitik que nos atravesse.

Falamos já há muito, com experiência, dados, estudos e textões sem fim, sobre as causas e consequências graves que os horrores da seara do simbólico têm quando a materialidade de seus discursos se expressa na violência brutal contra corpos que dissentem.

Falamos. Falar é um modo de resistir. Hesito em finalizar o texto com isso, mas dada a surrealpolitik patriarcal, não custa torcer para que seja possível poder continuar falando livremente.

Publicado originalmente no portal Carta Capital

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