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16 de dezembro de 2020

O uso da fé para a mentira, a morte e a política por Érico Firmo

O pastor Davi Goés é do Ministério Canaã em Fortaleza (Foto: Reprodução/Facebook)


O Ministério Público do Ceará entrou ontem num caso muito sério. Iniciou procedimentos para que seja responsabilizado civil e criminalmente o pastor Davi Goés, do Ministério Canaã em Fortaleza. Em vídeo, o pastor diz que a vacina Coronavac causa câncer e dentro dela tem o HIV. Ah, diz ainda que ela atinge o DNA. A vacina é produzida em parceria da chinesa Sinovac com o Instituto Butantan, do Brasil.

O pastor Góes atribui as informações a um "grande cientista francês" cujo nome ele não diz. Segundo esse "grande cientista", conta o pastor, o SARS-CoV-2, coronavírus causador da Covid-19, foi criado em laboratório na França e "aprimorado" na China. Góes não apenas deixa de informar o nome do "grande cientista". Ele também não diz por que resolveu acreditar nele e não nos vários cientistas, brasileiros mesmos, que trabalham na produção da vacina no Butantan.

O irônico é que, em dado momento, o pastor afirma: "Olha a seriedade disso". Pois é, olha a seriedade do que ele está falando. No mínimo, no mais rasteiro patamar, é uma irresponsabilidade fazer alegações tão graves sem nem ao menos dizer o nome do "grande cientista", sem apontar por qual motivo o sujeito merece credibilidade. Abraça o obscurantismo, a crendice, a superstição. Porém, é muito pior que isso.

O Ministério Público considera que a fala fere a Lei das Contravenções Penais, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, conhecida como Lei das Fake News, e a lei estadual que pune divulgação de informações falsas sobre a pandemia no Ceará. O MPCE entende ainda que pode configurar crime.

O pastor se vale da fé das pessoas e da confiança que depositam nele para um discurso cuja consequência pode ser a morte de muita gente. Aliás, isso é irreversível: a antipropaganda contra a vacina não tem mais como ser revertida. Tem gente que se negará a tomar. Isso provocará lacunas na imunização. Gente que poderia ser salva vai morrer por isso. Muita gente tem responsabilidade nisso.

Góes é um dos não pouco religiosos que possuem intensa atuação política e usam a religião em apoio a políticos. No discurso em questão mesmo, ele defende a postura de Jair Bolsonaro, critica o governo de São Paulo — segundo ele, único do mundo a comprar a vacina da Sinovac, o que não é verdade, há também Turquia e Indonésia. O Chile faz testes. O pastor aparece ainda em fotos e vídeos com o deputado André Fernandes (Republicanos), a ministra Damares Alves e com o próprio Bolsonaro.

O propagandista da antivacina

O ativismo antivacina já fez estrago irreversível. Já nos fez retroceder décadas na compreensão da importância da prevenção. O impacto não ficará restrito à Covid-19. Quem propaga esse discurso com base em achismos, em ouvir falar, em vídeo que assistiu, áudio que recebeu, saiba que está contribuindo para a morte de muitas pessoas, no médio e no longo prazo.

O maior propagandista contra a vacina é o presidente Bolsonaro. A cada suspeita que levanta sem fundamentos, a cada alegação que não tem base nos resultados dos testes, ele incentiva a resistência.

O presidente fez um dos gestos mais contundentes jamais vistos de um chefe de Estado contra um tratamento de saúde. Disse que não tomará vacina, nenhuma delas. Não é só com a "vacina chinesa". O simbolismo é forte e trágico. Ele diz que é problema dele. Quem deixa de tomar vacina assume risco de contagiar outras pessoas.

Bolsonaro quer que quem tomar vacina assine um termo de responsabilidade. Seria bom que fosse assinado também por quem se recusa a tomar, até pelo peso que pode ter na rede de saúde. O presidente percebeu que impedir a vacinação seria um desastre político. Então, faz todos os gestos possíveis para deixar as pessoas com medo de se imunizar. A postura do presidente levará a mortes e causará ainda mais prejuízos à economia que ele tanto alega querer proteger.

Publicado originalmente no portal O Povo Online

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