30 de outubro de 2022

Que Brasil vai às urnas? por Henrique Araújo

O presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula disputam o segundo turno (Foto: Reprodução/TSE)

O país que chega às urnas neste domingo, 30, atravessou uma campanha política atípica, na qual o próprio sistema eleitoral esteve permanentemente sob ataque de um dos candidatos até a véspera da votação, com ofensivas contra as instituições e os atores que as integram.

E, no entanto, milhões de brasileiros e brasileiras devem escolher um presidente mediante voto secreto, seguro e depositado eletronicamente, como tem sido já há mais de três décadas. Não apenas a urna é confiável. É um orgulho de quem se considere democrata.

Neste ano, concorrem Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ex-presidente por dois mandatos e agora novamente candidato, e Jair Bolsonaro (PL), atual chefe do Executivo que pleiteia recondução ao cargo depois de uma gestão reprovada por mais da metade do eleitorado.

Para analistas ouvidos pelo O POVO, há uma verdade autoevidente na reta final desse embate: quem quer que vença a disputa, seja Lula ou Bolsonaro, terá pela frente uma oposição expressiva numericamente e articulada no Legislativo e nas ruas, que agora incluem também as redes.

Se Lula se sagrar presidente, enfrentará cenário inédito mesmo para quem já exerceu o poder por oito anos e fez uma sucessora: um Congresso de maioria conservadora, que lhe trará dificuldade desde a primeira hora de governança.

Caso Bolsonaro se eleja, terá sido a despeito da rejeição de uma parcela substantiva do povo para o qual ele governa e cuja confiança ele precisará reconquistar. Afinal, segundo o Datafolha, a maioria do eleitorado não dá crédito ao que o seu mandatário fala ou promete.

Economicamente, o quadro atual não é menos grave. O pacote de ações eleitoreiras lançado por Bolsonaro a poucos meses da campanha, por exemplo, é uma bomba fiscal prestes a explodir.

Politicamente, o ambiente de cisão que hoje se verifica em qualquer cidade tende a se prolongar ainda por algum tempo, asseguram especialistas. Nesse sentido, a atual divisão de forças veio para ficar. O bolsonarismo é uma realidade, mesmo com derrota eventual de Bolsonaro.

Em uma série de artigos escritos a convite do jornal, estudiosos refletem sobre o que entendem como os aspectos mais importantes de uma queda de braço violenta, simbólica e fisicamente. A eleição de 2022 não resultou apenas em arengas e discussões inflamadas em grupos de famílias. Ela produziu mortos.

Diante disso, é possível alguma pacificação no período que se segue ao pleito? Ou as feridas abertas no processo vão demorar para sarar?

Por ora, ninguém arrisca uma resposta segura.

Um país dividido

A polarização do país é inegável. O segundo turno delineou com muita ênfase a contraposição entre as duas propostas de governo. Não se trata apenas de divergências no modo de administrar, são dois projetos de país inteiramente distintos e até mesmo antagônicos.

A principal consequência disso é que, seja quem for o vencedor da eleição presidencial, o governante irá se deparar com uma oposição aguerrida e hostil. A tendência é a permanência do clima de embate eleitoral: nas redes sociais e nas ruas, nas TVs e nos jornais, na Câmara e no Senado, nos tribunais de primeira e última instância, nas políticas dos governadores, nas tropas policiais e militares.

Como fator atenuante, cabe lembrar que o tamanho da força oposicionista será menor que a quase metade dos eleitores que não votaram no candidato vitorioso.

Os resultados do primeiro turno deixaram patente que o desempenho surpreendente do Partido Liberal foi ampliado pela adesão em massa de segmentos nutridos de antipetismo. O bolsonarismo, tudo indica, fincou raízes em uma parcela da população que não ultrapassa um terço dos brasileiros.

Do outro lado, Lula, desde a escolha de Geraldo Alckmin como vice, agregou eleitores de centro e, no segundo turno, recebeu apoios até mesmo de expoentes da centro-direita como João Amoêdo.

Durante seu mandato, Jair Bolsonaro não mostrou serenidade para lidar com os movimentos da oposição. Contou com a sorte e o paradoxo de que, durante a pandemia, quando a rejeição ao presidente esteve mais acentuada, as pessoas evitaram aglomerações, esvaziando os atos de rua. Em um pouco provável segundo mandato sua reação seria intensificar o caráter autoritário do seu governo.

Em seus dois mandatos, Lula não se deparou com forças com a dimensão do bolsonarismo. É verdade que não encontrou tratamento ameno no parlamento, na imprensa e no Judiciário. A situação, porém, piorou depois de 2012. Sua sucessora não soube confrontar a oposição quando esta organizou gigantescas manifestações de rua. O desafio de Lula, portanto, será, em caso de vitória, evitar repetir os erros de Dilma Rousseff.

A paz vencerá

É pela paz, manutenção dos afetos, pelo direito de viver em sossego com os seus, o não assédio na expressão da fé, a possibilidade de usar o verde-amarelo sem ser rotulado assim ou assado, que brasileiras e brasileiros votarão neste domingo, 30. Duas propostas antagônicas estão em disputa: uma que representa a esperança de resgatar, pacífica e coletivamente, a civilidade para reconstruir um país que sangra mais todo dia, e outra que representa a negação dessa alternativa via barbarização social. É a oportunidade de sonhar, de um lado, contra a crueldade de assistir à autofagia, de outro.

Há um pandemônio no Planalto arruinando a imagem do Brasil, o povo e a coisa pública. O império do deboche, da incompetência, da provocação gratuita, da desestabilização institucional e da promoção do ódio. Um pesadelo que escancarou todo seu desprezo pela vida na pandemia de Covid-19, quando refutou a ciência, negou a gravidade da crise e, por ações e omissões, contribuiu com 1/3 das quase 700 mil mortes no país. Um culto à maldade sustentado pela compra de apoio com o esbulho do erário, pela desinformação social e difusão do ódio via fake news e ameaça constante de traição à pátria com golpe de Estado, só não emplacado porque instituições convalescentes conseguiram conter o retrocesso. Sem falar das leviandades contra a Justiça Eleitoral e a integridade do processo eleitoral brasileiro.

Basta! O bom da democracia é que eleitores terão a oportunidade de dizer o quão felizes ou descontentes estão com o resultado da economia para o seu bolso; a banalização da brutalidade nas relações sociais, inclusive a intolerância à imprensa, a violência política e o assédio eleitoral no trabalho; a naturalização da misoginia, racismo, homofobia, xenofobia, violência sexual contra crianças e adolescentes; a autoblindagem do governo contra a fiscalização e a tolerância com sonegadores, amantes de armas, devastadores de florestas, mercadores da fé. E, também, o quão dispostos estão em optar pela paz ou a beligerância, com a continuidade da algazarra política e o risco totalitário, em paralelo ao aniquilamento dos vínculos afetivos, da fraternidade e generosidade entre as pessoas.

Às urnas, cidadãos!

Chegamos a um dos dias mais importantes de nossa história recente, com desdobramentos para aquilo que se entende como "História do Brasil". Decidiremos, durante o dia de hoje, quem tocará o comando da nação pelos próximos quatro anos, mas com consequências para a posteridade longeva. Esta eleição teve alguns antecedentes em termos de narrativa, tais como: sobrevida à democracia, guerra do bem contra o mal, país cansado de polarização, populismo, fundamentalismo religioso, dentre outros.

Pouco de Brasil, contudo, se discutiu neste segundo turno. Temos, pela primeira vez, um ex-presidente disputando contra o presidente que tenta a reeleição, o que tornaria mais nítido o modelo de governo levado a cabo por cada um quando tiveram suas oportunidades de presidir o país.

Talvez isso explique, em parte, que as pesquisas até aqui tenham mostrado pouca oscilação em torno daquilo que já foi o resultado do primeiro turno: Lula em torno de 48% e Bolsonaro na casa dos 45%. Tudo igual, mesmo depois de muitos apoios declarados a um lado e a outro.

O Brasil "do real", do liberalismo, da estabilidade (inclusive financeira) e dos "democratas" manifestou apoio a Lula. O Brasil do agro, do fundamentalismo religioso, dos CACs, da "nova política", da "revolução judiciária" e do reacionarismo, ao que parece, marcha com Bolsonaro. Um país, pois, polarizado, contra aquilo que parte da imprensa e da classe política dizia, é isso o que sairá das urnas, logo mais.

Os resultados da eleição não encerram o processo eleitoral de hoje. Seja Bolsonaro o eleito, com um Congresso majoritariamente favorável, o projeto político de esgarçamento da democracia ganhará mais capilaridade, exigindo ainda mais a vigilância das instituições, da oposição e do mercado em relação a um governo com traços autoritários e a uma sociedade cuja maioria (ou metade dela) sanciona tal projeto. Seja Lula o vencedor, os democratas a seu lado terão o grande desafio de garantir a governabilidade em meio a ataques os mais ferozes a seu governo, sem falar nos movimentos de questionamento do resultado final das urnas.

"A democracia é um mal-entendido" é uma frase atribuída a Sergio Buarque de Hollanda; ela nos auxilia a compreender, atônitos, resultados eleitorais que se produzem em nome dela, tendo-a como legitimadora. Por isso, vote!

Somos todos Sísifo

É impossível compreender o Brasil sem levar em consideração os males de nossa colonização: a herança escravocrata, a concentração de renda e o autoritarismo que perpassa nossas relações sociais. A superação desses três elementos constituintes dessa brasilidade tão mesquinha é um projeto ainda incompleto. Ao longo da história, raros foram os momentos em que ousamos enfrentar essas chagas sociais como se deveria.

A ideia de um processo civilizatório, inclusivo e diverso, durou o tempo de uma primavera. Tratou-se de um "bug" no sistema logo corrigido pela programação do mais do mesmo da lógica do senhorio. O que mais se viu foram tentativas de acomodar interesses conflitantes e reações exasperadas de grupos privilegiados aos avanços sociais mais tímidos.

Estas eleições colocaram frente a frente dois projetos antagônicos. Lula e Bolsonaro encarnam concepções distintas de se fazer política e de futuro. Suas biografias condensam práticas ancestrais de resistência e de dominação. É possível ver traços delas nos discursos e nos símbolos mobilizados na campanha.

O homem branco e cristão como o padrão-ouro do que seria a humanidade é um conceito em crise e fadado à extinção. Formas de existência plurais começam a ganhar vez e voz no campo da micropolítica. As lideranças que mais rápido perceberem isso sairão na frente nos futuros pleitos.

Por óbvio, a velha política não entregará os pontos facilmente. A resposta veio por meio do jorro de dinheiro público que irrigou campanhas de Norte a Sul e da normalização da violência política como estratégia de intimidação. As raposas estão acuadas diante da novidade que brota das juventudes negras e periféricas, das mulheres, dos povos originários e da população LGBT. Até mesmo uma nova centro-direita emergirá desse processo.

Retomar o que se perdeu de civilidade é a nossa tarefa histórica neste momento. Teremos muito trabalho pela frente. Assim como no mito de Sísifo, a pedra que empurramos montanha acima após a redemocratização despencou morro abaixo. É nossa missão erguê-la novamente. Albert Camus, ao tratar dessa alegoria, ressalta que nem sempre vemos os resultados das lutas que travamos, mas ainda devemos cumprir esse destino.

Estar consciente dessa limitação histórica não é razão para deixar de fazer o que é o certo. "É preciso imaginar Sísifo feliz", afirma o filósofo. A rocha é pesada e nossos ombros doem diante do fardo que será a reconstrução deste país. A partir do dia 30, seremos todos Sísifos. E, ainda assim, seremos felizes.

Publicado originalmente no portal O Povo Online

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