10 de março de 2024

10 mulheres cearenses que marcaram e marcam a política do Brasil

Muitas esquecidas no tempo, essas mulheres mudaram suas realidades e foram catalisadoras de avanços (Foto: Reprodução/O Povo)

Passa do número de dedos das suas mãos a quantidade de mulheres rainhas — não consortes, mas que realmente tinham poder de decisão — que você consegue nomear? Nos livros de história, quantas mulheres são mencionadas como líderes de movimentos catalisadores de grande mudanças no Brasil? Mesmo presentes, elas levam os créditos?

Ao longo de milhares de anos, o conceito de ser mulher na sociedade mudou. Reprodutora, esposa, mãe, cuidadora, símbolo sexual, indivíduo com direitos, vivências sociais e culturais, cidadã. Para vencer o apagamento histórico, é preciso que a lista inclua líderes, chefes e revolucionárias.

Não foram poucas as que sonharam muito além do que lhe era permitido no tempo em que viviam. As Marias, Antônias, Anas e Fátimas que foram pioneiras na política e na dinâmica social que, em primeiro plano parecia ser apenas familiar ou local, mas que foram estratégicas para impulsionar movimentos de libertação não só para outras mulheres, mas para homens também.

Pioneiras, elas inauguraram novos momentos e foram protagonistas de histórias que ecoam. Bárbara de Alencar, Fideralina Augusto Lima, Jovita Feitosa, Preta Tia Simoa, Elvira Pinho, Aldamira Guedes Fernandes, Auri Moura Costa, Heloneida Studart, Maria Luiza Fontenele, Maria da Penha e Cacique Pequena.

Do Ceará, seja de nascimento ou por vivência, elas deixaram marcas com suas trajetórias de vida em períodos ainda mais difíceis para mulheres. E as alcunhas dadas a elas iam, quase sempre, em vias de termos masculinos. Fideralina era “coronel de saia”, Maria Luiza escutava críticas para “diminuir seu ímpeto”.

“Por mais que a gente tenha uma linguagem diferente, uma aceitação diferente, um debate público sobre o lugar das mulheres mais recentemente. Os desafios para as mulheres no espaço público ainda é uma questão. Ainda é recheado de problemáticas. Eu acho que era difícil ter mais participação política e segue sendo”, avalia Gleidiane de Sousa Ferreira, professora do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).

Ela destaca que, principalmente na figura de mulheres em cargos de liderança do passado, há uma associação com características masculinas e, a partir disso, uma desqualificação por ocuparem determinados cargos. “Às vezes, as mulheres são nominadas, são tachadas, vistas e desqualificadas a partir desses atributos de masculinidade. Grande parte de tudo aquilo que a gente acha que é relacionado ao poder ou é símbolo de poder, símbolo do espaço público, dessa vida social de quem pode falar tudo é, simbolicamente, na prática, foi entendido como uma equivalência masculinidade”, ressalta.

Ela avalia que essas mulheres que se apropriam dos espaços públicos, mais associados a homens, ao demonstrarem firmeza, convicção em suas ideias e o desejo de seguir suas próprias decisões sofrem repressões. “A gente se pergunta justamente porque uma mulher que é firme, que tem uma voz, uma posição clara na sociedade, que se articula politicamente, que luta pelos seus direitos, que não aceita determinados lugares ou determinadas coisas, essas mulheres são tidas como mais próximas de um comportamento masculino, né? Então quem que definiu que é um comportamento masculino?”, questiona.

“Por que que a luta, a fibra, a certeza, a posição bem demarcada, a segurança numa fala, a segurança da vida profissional, porque que isso não pode ser entendido como atributo também feminino. Há historicamente também uma usurpação patriarcal dos adjetivos usados para pensar no espaço público,”, avalia ainda, ela que é coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa, História, Gênero e América Latina (GEHGAL).

A professora aponta ainda o apagamento das mulheres na História. Tia Preta Simoa e Elvira Pinho, mesmo com participações fundamentais em seus tempos históricos, têm poucas informações disponíveis e são pouco lembradas. Epistemicídio. “A academia tem várias palavras para pensar essa não visibilidade de alguns sujeitos, alguns pensamentos. Isso para mulheres tem pelo menos meio século que dentro da historiografia a gente discute isso”, ressalta ela, ao mencionar o trabalho coletivo que pesquisadoras têm feito para consolidar estudos que resgatam a vida de diversas personagens femininas na História.

“Por que a gente ainda tem invisibilidades? Por que as pessoas conhecem menos a história das mulheres ou sequer pensam sobre a história das mulheres? Por que as pessoas conhecem muito pouco essas personagens que deveriam estar numa memória coletiva das mulheres? Porque há muito pouco interesse público na própria produção histórica profissional”, ressalta a professora.

Se hoje, ainda é desafio para os tribunais eleitorais e para os legislativos aumentar a presença feminina na política, há 100 atrás quase impossível. Isso porque fazem 90 anos que mulheres podem votar e serem votadas. O voto feminino no Brasil foi reconhecido em 1932 por meio de decreto e ainda com diversas restrições. A possibilidade só foi incorporada à Constituição de 1934, ainda facultativa. Em 1965, mais de 30 anos depois, tornou-se obrigatório, sendo equiparado ao dos homens.

O fato atrasou em décadas, quase um século, o engajamento das mulheres na tomada de decisões da vida pública. Para se ter um parâmetro, o número atual de prefeitas à frente de gestões cearenses representa apenas 16,85% dos municípios do Ceará, um índice superior à média nacional, que é de 12%, mas bem longe dos 51% de mulheres no Estado. A bancada no legislativo, entre federal e estadual, é a maior já registrada, mas fica na casa dos 17%, ocupando 12 das 68 vagas em disputa no Estado.

Mulheres cearenses que mudaram a política do Brasil

A 1ª presa política do Brasil

Se o sobrenome Alencar evoca o nome de um homem, o do escritor José de Alencar, de Iracema e O Guarani, antes mesmo dele, foi uma mulher que ostentou a alcunha. A avó dele, a revolucionária Bárbara Pereira de Alencar. Nascida em Pernambuco, foi no Ceará que se tornou liderança na região do Cariri, uma matriarca com pé de coronel(a), ao administrar os negócios da família, na época, “coisa de homem”.

A força chegou à política. Após participação ativa na Revolução Pernambucana, de 1817, ela foi encarcerada, sendo a primeira mulher presa política do Brasil. Na época, ela e o filho José Martiniano de Alencar desafiaram a Coroa Portuguesa e proclamaram uma república no Crato. Mesmo que por apenas oito dias, o fato aconteceu 70 anos antes da independência do Brasil.

Em 1824, ela voltou a ser protagonista na Confederação do Equador, quando perdeu dois filhos, entre eles o mártir Tristão Gonçalves. O movimento queria uma república no Nordeste, longe das amarras de Dom Pedro II. Ela, no entanto, como muitos, cresceu financeiramente como mão de obra escrava, tornando seu nome controverso por ter sido uma das maiores proprietárias de escravizados na região do Cariri.

A coronel do sertão

O tempo não esperou mais que seis dias para fazer nascer mais uma que seria uma coronel no Ceará. Se Bárbara morreu no dia 18 de agosto de 1832, logo mais em 24 de agosto do mesmo ano, em Lavras da Mangabeira, nasceu Fideralina Augusto Lima. Mãe de muitos filhos e primogênita de uma família influente, ela teve participação ativa de liderança na vida política e social do Ceará entre o fim do século XIX e o começo do século XX, um contraste com as práticas delimitadas para mulheres na época.

A chamada “coronel de saia” administrava uma grande extensão territorial, mas, mais que isso, dava as cartas na região, seja por casar os filhos com outros nomes influentes como pegar em armas para defender seus ideais, em um período que os sertões cearenses só davam espaços para homens. Prova disso, é que, contrariada politicamente, derrubou o próprio filho da chefia do partido governista local.

Fideralina também contribuiu para a Sedição de Juazeiro (1913-1914), revolução de coronéis do sertão do Estado nada contentes com a interferência do governo federal. Partiram dela os recursos, armas, mantimentos e mão de obra para conseguir a vitória que alçou Padre Cícero como um dos proeminentes coronéis da política do país. Os braços de Fideralina garantiram ainda que três dos seus filhos fossem deputados na Assembleia Legislativa, dois deles tendo também sido vice-presidente do Estado. Descendentes ocupam espaços relevantes até hoje, em vários campos da política cearense, como Roberto Cláudio e Heitor Férrer.

A "Mulan cearense"

A conhecida avenida que cruza diversos bairros em Fortaleza faz permanecer viva a memória de Antônia Alves Feitosa, a Jovita Feitosa. Em história consoante ao folclore de dinastias do norte da China, entre 386 e 581 d.C, quando surgiu a lenda de uma Mulan, a jovem cearense se disfarçou de homem para servir como combatente da Guerra do Paraguai.

Ela foi a primeira cidadã do sexo feminino nordestina a participar de forças militares. Para integrar o Exército, cortou os cabelos e se disfarçou, mas foi descoberta e impedida de prosseguir para o campo de batalha por ordem do Ministério da Guerra. Mas, foi intensamente usada na propaganda pelo alistamento. Em 2017, foi incluída no livro Heróis da Pátria, publicação que registra os personagens que protagonizaram momentos importantes da história do Brasil e ajudaram a construir a identidade nacional.

A ex-escravizada que liderou a luta por liberdade

Todo 25 de julho, o Ceará celebra o Dia Estadual da Preta Tia Simoa e da Mulher Negra, marcado no Calendário Oficial do Estado. A data é uma tentativa de resgatar a memória de uma líder perdida no tempo. Passou por Maria Simôa da Conceição, a Preta Tia Simoa, a mobilização dos jangadeiros contra o transporte de negros escravizados para a capital da província do Ceará, no século XIX.

Ela, uma negra liberta, tinha um sonho e lutou por ele: a liberdade seria para todos, uma conquista coletiva. A atuação é longe do ideal do abolicionista pregado de forma popular de homens brancos “inconformados” com a exploração dos corpos negros. Ao lado do marido, José Luís Napoleão, liderou os acontecimentos de janeiro de 1881 em Fortaleza, salvo na história como “Greve dos Jangadeiros”, que teria desdobramentos em agosto do mesmo ano. Ficaria marcado na história outro líder do movimento: Francisco José do Nascimento, Chico da Matilde, o Dragão do Mar.

No episódio, decretou-se o fim do embarque de escravizados no porto da cidade, definindo os rumos para a abolição da escravidão na Província, que só se efetivaria três anos mais tarde. O Ceará é até hoje referenciado como a primeira localidade a libertar escravos.

A 1ª juíza do Brasil

Há uma lenda de que Auri Moura Costa só se tornou a primeira juíza de direito do Brasil porque os avaliadores, ao corrigirem a prova, não sabiam que o nome era feminino. O questionamento está longe da verdade. Em 31 de maio de 1939, como consta sua nomeação no Diário Oficial, aconteceu a designação para que ela, bacharela, assumisse o cargo de juiz municipal do Termo de Várzea Alegre, pertencente à então Comarca de Lavras.

A entrada foi um marco em um ambiente predominantemente masculino da magistratura. A nomeação abriu caminhos para outras mulheres, mas ainda sim viu a conquista ser questionada, como muitas outras que vieram depois. Ela conseguiu ainda ser a primeira juíza a se tornar desembargadora do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), além de ter presidido o Tribunal Regional Eleitoral do Estado (TRE/CE), ter sido vice-presidente do TJCE e diretora do Fórum Clóvis Beviláqua.

Primeira prefeita eleita no Brasil

Aumentar a participação feminina na política é um desafio atual que os tribunais eleitorais tentam criar alternativas para alcançar, imagina em 1958. Foi nesse ano que Aldamira Guedes Fernandes se tornou a primeira mulher eleita prefeita por voto direto no Brasil, quando se tornou gestora de Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará.

Outras duas mulheres já tinham sido prefeitas, é preciso ressaltar, mas nenhuma precisou passar pelo crivo de uma cidade inteira, já que foram eleitas em voto indireto. Aldamira não é nem nascida no município, natural de Iguatu. A vitória veio por maioria absoluta de votos.

Casou ainda jovem com o médico e também ex-gestor do município, Joaquim Fernandes. Como conta o livro Política em versos e músicas (2013), do historiador Adegildo Férrer, a campanha aconteceu sem folder, santinho ou outro tipo de propaganda, o segredo foi jingle na rádio Voz de Cristal com rima que dizia “vote em Aldamira Guedes, não adianta votar para perder. Dona Altamira para prefeita é mãe de família e vai vencer”. A fala remete ainda a uma associação conservadora da figura feminina, mas marcou um avanço para outras mulheres terem ao menos a perspectiva de que era possível.

Primeira prefeita de Capital

O caminho foi aberto para que Maria Luiza Menezes Fontenele se tornasse a primeira mulher do Brasil prefeita de uma capital, quando administrou Fortaleza entre 1986 e 1988. No mesmo ano, em 1985, foi eleita também Gardênia Gonçalves, prefeita de São Luís pelo PSD. Maria Luiza tinha um perfil diferente. Gardênia era do partido da ditadura e foi casada com João Castelo, que foi governador, senador, prefeito e deputado federal. A família dele tinha amizade com os Sarney.

Maria traçou caminho com deputada estadual e federal, em uma trajetória de oposição ao regime, no movimento feminino pela anistia e na campanha pelas “Diretas Já”. Era ainda militante revolucionária e marxista. Chegou ao PT nas vias para ser candidata, coisa que a sigla até hoje não é acostumada a fazer e teve que derrotar ainda o favoritismo de Paes de Andrade (PMDB) e Lúcio Alcântara (PFL, à época). Apesar de uma gestão conturbada, chegando a ser expulsa de sua sigla, Maria segue até hoje na militância da causa contra o capitalismo e na defesa dos direitos das mulheres.

Por direitos e contra a ditadura

Heloneida Studart tinha sangue de Antônio Bezerra e Barão de Studart. Ambos se lançaram em mil funções e a descendente não foi diferente: cientista social, escritora, jornalista, romancista e sindicalista. Sua luta? O direito das mulheres. As percepções de mundo sempre foram além da tradição social da figura feminina na sociedade patriarcal. Por que às mulheres era negado o espaço público?

O ativismo foi tanto que foi presa na época da ditadura militar na frente dos filhos pequenos, mas nunca deixou de escrever e sonhar com mais para outras mulheres, como contam os diversos livros escritos por ela. Participou da I Conferência Mundial sobre as Mulheres, evento que aprovou um Plano de Ação e proclamou a Década da Mulher na ONU (1975-1985).

Ela integrou o "lobby do batom", grupo que lutava para incluir na Constituição leis como a da licença-maternidade de 120 dias. Foi deputada por seis mandatos pelo Rio de Janeiro, tendo lutado para a aprovação da medida para que mulheres pobres tivessem acesso a testes gratuitos de DNA quando os pais não quiserem assumir a paternidade.

O nome que é um brado contra a violência

São anos e anos em que se repete no Brasil: “Em briga de marido e mulher, não se meta a colher”. Tem que meter. Tem de acionar todos os mecanismos que a Lei Maria da Penha permite para proteger a vítima e quebrar o ciclo da violência. É fruto da luta de mais uma Maria do Brasil e do Ceará. A farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes seguiu uma trajetória por justiça após o marido cometer uma dupla tentativa de feminicídio contra ela, quando deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia, que a deixou paraplégica, e depois a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.

A violência sofrida por ela, no entanto, não era um caso isolado, era um exemplo do que acontecia, e acontece, no Brasil. Não desistir do caso desencadeou uma série de mudanças na legislação, no protocolo de acolhimento das vítimas e mais ainda no entendimento de que a violência contra a mulher decorre em razão do seu gênero. O fato de ser mulher reforça não só o padrão recorrente desse tipo de violência, mas também acentua a impunidade dos agressores.

A primeira cacique do Brasil

Uma vida inteira dedicada ao movimento de resistência dos povos indígenas cearenses é apenas uma das facetas de Maria de Lourdes da Conceição Alves, a Cacique Pequena. Professora, mestra da cultura e guardiã da memória são outras. Ela rompeu costumes patriarcais e se tornou a primeira indígena do Brasil na função de cacique até onde se conhece registro. Desde então, já são quase 30 anos de liderança. Coisa que, como ela mesma conta, causou surpresa e a levou a ser alvo de questionamentos: como poderia uma mulher servir para mais que para a cama e o pé de fogão?

Ela deu a lição. A mulher veio ao mundo para criar seus objetivos, ser alguém na vida, e encostar o ombro no ombro do homem. E seu pioneirismo não abandonou a tradição nem a luta de buscar o melhor para seu povo. Ela representou sua etnia no pedido de demarcação de terras que foi feito à Fundação Nacional do índio (Funai), além de ter sido liderança forte diante das diversas investidas das mãos de interesses empresariais que ameaçavam a terra dos Jenipapo-Kanindé.

E o futuro do povo seguirá sendo feminino, já que, de seus 16 filhos, a cacique escolhe duas de suas filhas, Jurema e Juliana, para liderar. Suas raízes se espalham, assim como na natureza, com uma delas assumindo responsabilidade não só pelo seus, mas por todos os indígenas do Ceará. Juliana (Alves), a Cacike Irê, é a primeira secretária dos Povos Indígenas do Estado, além de fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).

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