3 de novembro de 2023

Polarização intensifica divulgação de informações falsas sobre a transposição do São Francisco

Barragem de Jati, que recebe águas da transposição do rio São Francisco no Ceará e as distribui pelo Estado, via Cinturão das Águas Foto: Aurelio Alves)

 A transposição do São Francisco é alvo frequente de boatos e informações enganosas nas redes sociais pelo menos desde 2019. A partir da transição entre os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o tema passou a ser um dos mais problemáticos no cenário da desinformação. 

Considerada a maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil, a transposição do rio São Francisco tem como objetivo levar água para regiões que sofrem com a seca e a estiagem, no semiárido do Nordeste brasileiro. A proposta do empreendimento, cujo custo total é de R$ 14 bilhões aos cofres da União, é garantir a segurança hídrica de 12 milhões de pessoas em 390 municípios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.

A obra é dividida nos eixos Leste (217 km) e Norte (260 km) — este último é o que abastece o Ceará. A transposição consiste na construção de canais, reservatórios e estações de bombeamento para integrar as águas do Rio São Francisco – que nasce em Minas Gerais e passa pela Bahia, antes de chegar a Pernambuco, onde a obra se inicia —, a outras bacias hidrográficas dos estados atendidos pelo projeto. Além disso, conta com os ramais associados do Agreste (71 km), Apodi (115 km) e Salgado (36 km).

Pensado desde o fim da década de 1840, o projeto de integração das bacias do rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional só começou a sair do papel no segundo mandato de Lula (2007-2010). Desde então, o empreendimento foi marcado por atrasos, problemas de planejamento e execução, além do custo ambiental e da incerteza de que, efetivamente, ele atingiria o objetivo de garantir abastecimento de água e contribuir com o desenvolvimento da região.

Diante do tamanho, da complexidade e do impacto social e político, a transposição é alvo de disputas e, como consequência, tema frequente de desinformação. Nos últimos anos, o Projeto Comprova — coalizão colaborativa de 41 veículos de imprensa, da qual O POVO faz parte desde o início — e outras agências de checagem pelo Brasil desmentiram cerca de 30 conteúdos sobre o projeto, desde a responsabilidade por entregas até o funcionamento das estações de bombeamento e dos canais. Este conteúdo produzido pelo Comprova detalha o cenário de desinformação que cerca a transposição e a importância política e social da obra.

Caminhos da desinformação

Obras da transposição do Rio São Francisco (Foto: Inês Campelo)

Os conteúdos desinformativos sobre o Projeto de Integração do São Francisco não fazem distinção entre os eixos Norte e Leste, embora, mais recentemente, o primeiro tenha ficado mais tempo em evidência. Isso porque, em novembro do ano passado, foi identificado um defeito na Estação de Bombeamento EBI-3, na cidade de Salgueiro (PE), que impediu o funcionamento das bombas e suspendeu a liberação de água para canais do Eixo Norte.

Como a estação só teve o funcionamento interrompido em janeiro deste ano, para a realização do reparo necessário, diversas publicações passaram a acusar o governo Lula de desligar as bombas da transposição deliberadamente, com a intenção de deixar a população sem água e sofrendo com a seca. Isso gerou conteúdos desinformativos sobre a Barragem de Jati (CE) e suas cascatas, vistas das margens da rodovia CE-153, sobre o Reservatório de Negreiros (PE) e sobre a Estação de Bombeamento Vertical EBV-6, em Sertânia (PE).

Antes disso, publicações já atribuíam falsamente ao governo Bolsonaro entregas no Eixo Norte, como o Canal de Penaforte (CE), as estações de bombeamento EBI-1 e EBI-2, em Cabrobó (PE). No Eixo Leste, entregas feitas por Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) também foram falsamente parar na conta de Bolsonaro: a inauguração da Ponte do Rio da Barra (PE) e do canal do Rio do Feijão (PB), por exemplo.

Além disso, vídeos mostravam canais de outra obra – o Cinturão das Águas do Ceará (CAC) –, alguns ainda em construção, como se fossem da transposição, sem água. No Eixo Leste, até uma valeta de escoamento de água da chuva, seca, foi falsamente identificado um canal da transposição sem água, graças ao atual governo.

Disputa de "paternidade" pela transposição

Em março de 2017, enquanto o então presidente Michel Temer entregava o Eixo Leste da Transposição, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff fizeram uma "inauguração popular da Transposição do Rio São Francisco" na cidade de Monteiro, na Paraíba (Foto: Ricardo Stuckert)

A polarização em torno da obra é justamente o que faz com que, nos últimos anos, a transposição do São Francisco tenha sido alvo de tanta desinformação. "Utilizar a desinformação em relação à transposição tem relação com você garantir, abarcar uma posição política contra ou a favor de algum adversário político. Isso fica muito evidente com relação a dizer quem é o responsável pela obra, qual a porcentagem da obra foi finalizada ou quem finalizou", exemplifica Luciana Santana, cientista política, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e secretária executiva da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).

No governo Jair Bolsonaro, diversas postagens nas redes buscaram inflar a responsabilidade dele pela obra, ainda que ele a tenha recebido com mais de 90% da execução física concluída. Para apoiadores - e no discurso do próprio governo na época - o agora ex-presidente era o verdadeiro responsável por levar água ao Nordeste, algo que nem Luiz Inácio Lula da Silva nem Dilma Rousseff, nem Michel Temer teriam conseguido fazer, o que não é verdade. Além de todo o Eixo Leste ter entrado em operação no governo Temer, trechos do Eixo Norte já tinham sido inaugurados por Dilma.

"Essa busca por paternidade, essas inaugurações de tempos em tempos são uma tentativa de resgate mesmo daquilo ali como um capital político. E o mais bem sucedido é aquele que consegue buscar a maior propaganda positiva para si", diz Luciana.

É um pensamento parecido com o de Cláudio André de Souza, cientista político e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), para quem a execução da obra serve como um indicativo de eficácia de governo.

"Se trata de uma obra muito complexa, gigantesca, que toca um assunto que é muito caro a uma parte importante da população brasileira. A gente está falando da convivência com o Semiárido, da chegada da água, e isso tem um valor muito grande do ponto de vista do comportamento político, da percepção de eficácia governamental, de presença de Estado na vida de milhares de pessoas", observa.

Ruben Siqueira, atual coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na Bahia, também fala sobre o valor político da obra para o governo Lula. "Era uma obra que tinha um grande apelo popular: Lula, o nordestino fugido da seca, vai resolver, vai fazer aquilo que Dom Pedro II não conseguiu, que era a transposição", aponta. De 2005 a 2015, Siqueira foi coordenador de projeto da Bacia do São Francisco na CPT.

Levar a cabo a transposição do São Francisco, explica Cláudio André, era uma forma de Lula, principalmente, levar uma obra estruturante ao Nordeste e encarar o desafio de mudar a relação dos governos com aquela parte do Brasil. Não bastava chegar com o Bolsa Família, aponta, era preciso ter um projeto estruturante que mudasse a correlação de forças, internamente, pensando no Nordeste.

Luciana Santana concorda: "Para o governo Lula é uma obra que teve um impacto muito expressivo em termos de infraestrutura e entrou naquele pacote de que, no Nordeste, não são apenas políticas públicas de assistência social, mas também de infraestrutura, de mudança, que fazem diferença regionalmente".

O problema, no entanto, é que, apesar do investimento alto, a obra não foi concluída nos governos petistas, antes do impeachment de Dilma, em 2016. É daí que vem a entrada de Bolsonaro na disputa pelo capital político: "Para ele, trabalhar nessa obra foi como se ele tivesse ali investido também. Ao mesmo tempo, ele quer mostrar para o Nordeste, que é um lugar onde ele tem uma baixa aprovação, ele é politicamente menos quisto do que Lula, que ele estava olhando também para a região", diz Luciana.

A diferença, aponta Cláudio André, é que, no Nordeste, Lula "joga em casa", inclusive pela marca do lulismo, que sempre foi de combate à pobreza, e por ser uma região onde ele e o PT sempre tiveram protagonismo. "Essa é uma obra que tem um alto investimento e eu entendo que é uma obra muito simbólica, principalmente para Lula. Para Bolsonaro, significava ter ganhos eleitorais. Mas, a gente sabe que Lula apresenta um padrão de voto muito consistente no Nordeste. É uma região em que ele tem estabilidade na competição política", explica.

Enquanto isso, para Bolsonaro, deixar um "legado" de sua gestão no Nordeste poderia significar uma possibilidade, ainda que bastante remota, de sustentar uma candidatura em 2026, aponta Cláudio André. "O tempo inteiro no governo Bolsonaro, ele tentou imprimir uma marca, algum tipo de agenda que fizesse com que ele de fato entrasse no Nordeste, e se a gente olhar para as eleições de 2022, se ele tivesse tido um desempenho melhor no Nordeste, além do Sudeste, e poderia de fato ter ganhado as eleições", afirma.

Qual a situação da transposição do São Francisco agora

O Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional informa que estão concluídos 548 km da extensão total da obra (Foto: Divulgação/MIDR)

Atualmente, segundo o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), estão concluídos 548 km da extensão total, de 699 km, da transposição (considerando eixos Norte, Leste e ramais). A quilometragem finalizada corresponde a ambos os eixos e o Ramal do Agreste, que foi entregue em 2021.

Por enquanto, o Ramal do Apodi tem 27% das obras concluídas e a previsão do governo federal é entregá-lo em 2025. Já o Ramal do Salgado está em fase inicial. O edital de licitação para a execução das obras foi publicado em 2022.

O MIDR alerta que, em virtude da dinâmica de construção do empreendimento, não é adequado se considerar a extensão "concluída" em cada gestão federal, já que alguns trechos tiveram grande parte executada em uma gestão, mas apenas entraram em operação (foram concluídas) na gestão seguinte

Conforme o ministério, ambos os eixos estão operando em toda a extensão. Apenas a EBI-3, que apresentou defeito em novembro do ano passado e teve o funcionamento interrompido em janeiro deste ano, está operando com 50% da sua capacidade instalada, desde julho. Em nota, o MIDR informou que está tomando as providências para restabelecimento da operação com 100% da capacidade no início de 2024.

Com informações portal O Povo +, com conteúdo do Projeto Comprova. Investigado por Estado de S.Paulo e Plural, verificado por A Gazeta, Nexo, Metrópoles, Folha de S.Paulo, SBT e SBT News


Leia também:

Polarização intensifica desinformação sobre transposição do rio São Francisco


Transposição do Rio São Francisco: veja o que checamos sobre o assunto


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A Administração do Blog de Altaneira recomenda:
Leia a postagem antes de comentar;
É livre a manifestação do pensamento desde que não abuse ou desvirtuem os objetivos do Blog.