24 de julho de 2025

Brasil aposta no multilateralismo contra as "tarifas arbitrárias", por Luiz Carlos Azedo

O chanceler Mauro Vieira comanda o Ministério das Relações Exteriores (Foto: Valter Campanato)

Menos alegoria de mão e mais samba no pé. É isso que o Brasil precisa fazer para enfrentar a crise diplomática e comercial com os Estados Unidos. O Ministério das Relações Exteriores (MRE), sob o comando do chanceler Mauro Vieira, acerta ao apostar no multilateralismo como linha de resistência às tarifas arbitrárias impostas por Donald Trump. Não será suficiente para conter a pressão de Washington e proteger a soberania nacional, mas é importante externamente, porque mobiliza uma ampla coalizão de países prejudicados pelo tarifaço. E internamente, porque em torno de uma saída diplomática, em vez da escalada do confronto, há amplo consenso político nacional.

Na reunião do Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, o embaixador Philip Gough, representante do Brasil, foi direto ao ponto: tarifas unilaterais, "implementadas de forma caótica", violam princípios básicos do comércio internacional e ameaçam lançar a economia mundial em uma espiral de estagnação e preços altos. Recebeu apoio de 40 países, incluindo União Europeia (UE), Canadá e parceiros dos Brics. A OMC, paralisada em seu sistema de solução de controvérsias, pouco pode fazer na prática, mas ainda é a guardiã da institucionalidade das relações comerciais entre seus membros.

Sim, o Brasil reafirmou que prefere diálogo. A retaliação é medida extrema cujas consequências são  imprevisíveis, mas que podem se tornar necessárias para a soberania nacional. O "tarifaço" de 50%, previsto para entrar em vigor em 1º de agosto, dificilmente será suspenso de imediato. Trump usa tarifas não apenas como instrumento econômico, mas como arma política. Ao defender Jair Bolsonaro e atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente norte-americano transformou sua superavitária balança comercial com o Brasil em campo de batalha ideológico.

No pior cenário, Trump pode dobrar a aposta, ampliando sanções unilaterais, caso o julgamento do ex-presidente brasileiro avance. O governo Lula precisa adotar medidas de contingenciamento, com objetivo de redirecionar parte das exportações, absorver no mercado interno o que for possível e cuidar da manutenção dos empregos e da sobrevivência das empresas mais prejudicadas.

Desde que voltou à Casa Branca, Trump tem recorrido a tarifas como instrumento de chantagem, aplicando-as também contra Canadá, México e Japão. No caso brasileiro, porém, a interferência tem conotação política mais grave. A chantagem tarifária busca influenciar processos judiciais internos e fragilizar instituições democráticas. É uma tática de guerra híbrida: antes, os EUA usavam tanques e telegramas secretos; agora, pressionam com sanções econômicas e narrativas digitai

Manobra de sobrevivência

Essa ingerência não é novidade na história brasileira. O chamado "americanismo", desde a República Velha, foi um vetor de modernização pelo alto, associado ao fordismo e ao liberalismo econômico, em contraposição ao nosso "iberismo" patrimonialista. Durante décadas, foi sinônimo de eficiência produtiva e progresso social. Sua influência se estende aos padrões de consumo, de comportamento e à cultura popular. Hoje, sob Trump, assume uma forma pervertida, uma espécie de "americanismo do mal", que reforça o autoritarismo e alimenta aventuras golpistas.

A existência de setores políticos e empresariais que se associam ao intervencionismo norte-americano também não é novidade. O paralelo com o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e com o golpe militar de 1964 é inevitável. Na carta-testamento, Vargas denunciou a espoliação estrangeira e sacrificou a própria vida para impedir a ruptura institucional. Dez anos depois, o golpe aconteceu, com apoio direto de Washington, associado a políticos conservadores como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto e à cúpula militar, o que resultou em 21 anos de ditadura militar.

Hoje, a ameaça não vem dos quartéis — pelo contrário, o Alto Comando das Forças Armadas se opôs à tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro, cujos envolvidos estão sendo julgados, junto com Bolsonaro. O perigo é sistema articulado de pressão econômica e política, que se vale das redes sociais e da desinformação.

O Brasil precisa muito da sua diplomacia para traçar uma rota segura de saída dessa crise. Não haverá solução fácil. É preciso diversificar parcerias, reforçar laços com a UE, o mundo árabe e os países asiáticos, com destaque para China, Índia e Indonésia. A aposta no multilateralismo permanece válida, é o que há de mais permanente na política mundial, apesar dos ataques que hoje sofre. Diante dos fatos, é preciso reduzir a dependência econômica em relação aos EUA e reafirmar o país como ator relevante do Sul Global. Não por acaso, o Brasil aderiu à ação da África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça.

Não nos enganemos. A altivez é sinônimo de soberania, não a soberba. Não é isenta de riscos e contestação interna, a exemplo do posicionamento da Confederação Israelita do Brasil, que acusou o governo de abandonar a tradição de equilíbrio diplomático e de adotar "falsas narrativas" sobre Gaza, onde os fatos são autoexplicativos. No comércio exterior, setores como o agronegócio — especialmente café, suco de laranja e proteínas animais — temem retaliações americanas que podem afetar bilhões de dólares em exportações.

Retaliar com a Lei da Reciprocidade Econômica não é boa opção. A saída será a negociação paciente e resiliente, sem covardia. Soberania não é moeda de troca. Proteger a democracia brasileira passa por reafirmar a soberania e desarmar, com diplomacia e articulação internacional, as bombas-relógio deixadas por Trump. Multilateralismo, neste momento, não é ingenuidade: é estratégia de sobrevivência.

Publicado originalmente no Correio Braziliense

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