1 de setembro de 2025

Julgamento no STF de oficiais da alta patente também é marco histórico para a democracia

Os generais Augusto Heleno, Braga Neto, Paulo Nogueira e o almirante Almir Garnier são réus na por tentativa de golpe de estado, dentre outras acusações (Foto: Reprodução/Facebook)

Pela primeira vez na história do Brasil, um ex-presidente da República e oficiais generais de quatro estrelas respondem a uma denúncia formal por crimes relacionados a uma tentativa de ruptura institucional. Além de Jair Bolsonaro (PL), outros sete réus integrantes do chamado "núcleo 1" da trama golpista serão julgados a partir de amanhã no Supremo Tribunal Federal (STF), sendo cinco deles militares de alta patente.

Durante seu governo, Bolsonaro espalhou militares nos Três Poderes da República, o que pode explicar o fato de integrantes das Forças Armadas estarem em todos os 4 núcleos da investigação. Entre os acusados estão generais, almirantes, coronéis, tenentes-coronéis, majores, subtenentes — parte deles pertencente ao grupo de elite do Exército conhecido como "kids pretos". Onze militares acusados fazem parte do núcleo 3, responsável por planejar ações táticas e pressionar o alto comando das Forças para que aderissem à trama golpista para manter Bolsonaro no poder após sua derrota nas eleições de 2022.

Para o cientista político Jorge Chaloub, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a dimensão simbólica é clara. "É um marco inédito esse julgamento de militares de alta patente no Brasil. Temos uma tradição de protagonismo das Forças Armadas em golpes de Estado e uma longa tradição de que os protagonistas desses movimentos não sejam responsabilizados", explica. A seu ver, o que se inaugura no Supremo é a ruptura de um padrão histórico de impunidade militar que atravessou mais de um século.

Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), os denunciados teriam praticado golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, dano qualificado pela violência contra o patrimônio público e deterioração do patrimônio tombado.

Chaloub lembra que, desde a proclamação da República, em 1889, os militares arrogaram-se o papel de "poder moderador" herdado da monarquia. "Ao reivindicar para si a prerrogativa de decidir quais governos eram legítimos ou não, as Forças Armadas derrubaram presidentes eleitos, tentaram impedir posses — como em 1955 — e, em 1964, impuseram uma ditadura de duas décadas", contextualiza. Embora sempre houvesse diversidade interna, com nacionalistas e cosmopolitas disputando espaço nos quartéis, prevaleceu uma tradição autoritária, reforçada pelos expurgos de dissidentes após 1964.

O professor faz ainda uma comparação entre 1964 e 2023. "Na ditadura, construiu-se uma coalizão muito mais ampla de apoio ao golpe. Em 2023, havia atores relevantes defendendo a ruptura, mas em número socialmente minoritário. O 8 de janeiro e os planos golpistas nasceram de grupos mais desorganizados e de lideranças de baixa patente, ainda que com respaldo de figuras próximas a Bolsonaro", observa.

O especialista destaca que o bolsonarismo atualizou essa tradição autoritária com traços próprios. "Bolsonaro sempre defendeu a ruptura democrática e mobilizou segmentos da baixa classe média com linguagem próxima ao fascismo. Ao mesmo tempo, recorria à retórica de que os militares deveriam exercer um papel de poder moderador, invocando até o artigo 142 da Constituição."

Submissão

O historiador Jadir Gonçalves Rodrigues, da Universidade Federal de Goiás (UFG), chama atenção para o caráter inédito do acúmulo de evidências. "Dessa vez, foram os próprios militares e aliados civis que registraram dezenas e dezenas de provas do que estavam fazendo. Há vídeos, documentos, mensagens, rastros digitais. É um volume extraordinário, talvez o maior da história política brasileira em relação a uma tentativa de golpe", ressalta. Para ele, essa abundância de registros torna "indefensável" a posição dos acusados e retira qualquer margem de dúvida em relação ao crime.

Ele destaca, também, a submissão inédita da alta cúpula militar a um capitão reformado. "É algo nunca visto na história: generais de quatro estrelas se submeterem a um capitão expulso do Exército", afirma. E cita ainda episódios, como o desfile de tanques diante do Palácio da Alvorada, em agosto de 2021, como exemplo de uma "farsa teatral" que expôs a degradação institucional das Forças Armadas.

Na avaliação do historiador, o processo tem caráter pedagógico. "É preciso evitar leituras fatalistas. Há avanços e retrocessos. O julgamento estabelece um precedente importante ao submeter militares à Constituição. Mas a responsabilização é parcial: muitas figuras que poderiam ser punidas não estão nem estarão entre os réus. Convivemos com um avanço inédito e retrocessos simultâneos, inclusive, na forma como parte da elite política naturaliza gestos autoritários", observa.

Jadir Rodrigues complementa que o saldo é um reposicionamento institucional. "É um divisor de águas. Parte das Forças Armadas apoiou efusivamente o golpe, mas outra parte — os legalistas — ficou em silêncio e permitiu que a Justiça atuasse. Eles entregaram a parte podre para preservar seus privilégios. A democracia segue em risco, mas esse processo mostra que golpes têm custo e que, pela primeira vez, generais respondem como réus por tentar violar o Estado de Direito", conclui.

Validade da delação

Juristas classificam o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) como um marco na defesa da democracia brasileira. Para o criminalista Henrique Attuch, do escritório Wilton Gomes Advogados, trata-se da ação penal mais contundente já movida contra militares de alta patente em tempos democráticos.

"Não é a primeira vez que militares se encontram no banco dos réus — contudo, trata-se da ação penal mais contundente de nossa história contra um grupo de pessoas, em parte composto por militares, que atentaram contra o Estado Democrático de Direito", afirma Attuch.

Ele acrescenta que o processo simboliza uma resposta institucional inédita: "A importância de tal processo reside justamente no fato de que ele expressa a maior resistência de nossa democracia a atos do gênero. Deve ser lembrado que o Brasil viveu, ao longo de sua história, uma série de golpes de Estado, falhando as instituições, em cada uma dessas situações passadas, em seu dever de proteger esse sistema político de liberdades e igualdades, tão caro à sociedade".

Um dos elementos centrais do caso é a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O acordo foi determinante para a inclusão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na denúncia. De acordo com a advogada Ana Krasovic, sócia do escritório João Victor Abreu Advogados Associados, o depoimento de Cid se tornou peça-chave para a acusação.

"Mauro Cid tem sido o delator de muitas questões envolvendo Bolsonaro. Qual tem sido o impacto dele no julgamento? Mauro Cid é apontado como o 'responsável' pela inclusão do ex-presidente no polo passivo do inquérito em trâmite no STF. Fato é: o conteúdo apresentado passou a nortear diligências, sustentações e decisões processuais. Isso torna a colaboração um ponto de inflexão: se validada, reforçará a acusação; se descredibilizada, poderá comprometer toda a estratégia acusatória."

Publicado originalmente no Correio Braziliense

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