7 de janeiro de 2022

O desafio do jornalismo no combate à desinformação por Henrique Araújo


No filme "Não olhe para cima", dois cientistas tentam alertar o mundo de que um cometa irá colidir com a Terra, destruindo toda forma de vida. Apesar disso, há quem não apenas desconfie da verdade factual empiricamente comprovada, mas dissemine desinformação sobre a chegada do objeto, numa campanha cujo lema é fechar os olhos para a realidade. Ou, literalmente, não olhar para cima.

Negar a veracidade de informações que dizem respeito ao cotidiano e dão fundamento a consensos mínimos não é privilégio da ficção. Está no dia a dia de todos. No Brasil atual, há muitos tons de desinformação, todos mais ou menos ligados ao mesmo princípio: mobilizar audiências cativas a favor ou contra algum aspecto (urnas eletrônicas, por exemplo), normalmente a serviço de uma causa política.

Desafio para a coletividade, a desinformação se massificou e capilarizou, espalhando-se por outras plataformas, de acordo com pesquisadores ouvidos pelo O POVO. A fake news pontual de 2018 se sofisticou, dando lugar a um ecossistema desinformativo cujas peças, articuladas em rede, reiteram informação distorcida ou totalmente mentirosa.

Para eles, o ano de 2022 é um teste de fogo para o jornalismo no enfrentamento desse problema, que requer pactuação institucional e empenho da sociedade a fim de reduzir seu potencial nocivo.

Como parte das comemorações do seu aniversário, O POVO convida a refletir sobre o papel do jornalismo no combate à desinformação num contexto eleitoral no qual os efeitos da pandemia de Covid-19 ainda estão sendo sentidos.

Professora e pesquisadora do programa de pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), no Rio Grande do Sul, Raquel Recuero é especialista no ambiente de propagação de desinformação nas redes sociais. Segundo ela, diferentemente de alguns anos atrás, hoje esse tipo de conteúdo fraudulento segue um fluxo em rede, ou seja, está presente em múltiplos canais e plataformas, que se comunicam e alimentam.

"Não é uma coisa única, não é só um tipo de conteúdo. Desinformação não é só um conteúdo com algum tipo de falsidade que está circulando, ela também passa pelo reforço desse conteúdo por opinião, por exemplo", explica.

Recuero cita o exemplo das vacinas contra a Covid-19: "A gente vai ver desinformação sobre vacinas dizendo para as pessoas que, se elas tomarem, vão implantar um chip no cérebro delas. Essa desinformação vai circular, mas vai circular também um líder de opinião dizendo alguma coisa do tipo: 'Eu não vou me vacinar porque não quero que tenha um chip no meu cérebro'".

Nesse processo, continua a docente, os meios se complementam, e a desinformação propagada por um site ou blog ganha chancela discursiva de algum líder, seja político ou influenciador digital — ou mesmo do presidente da República, como aconteceu com a campanha de vacinação no Brasil, alvo de boicote sistemático de Jair Bolsonaro (PL).

"É uma coisa sistêmica", acrescenta a professora, "não é só desinformação, mas é a desinformação, a opinião do influenciador que reforça essa desinformação, são as fazendas de robôs, as contas automatizadas que repassam essa desinformação no Whatsapp e em vários canais do Youtube ou mesmo dentro do Facebook, em várias páginas ao mesmo tempo".

Jornalista e autora de A máquina do ódio, Patrícia Campos Mello identifica nessa amplitude da desinformação e no seu escoamento por diferentes meios um elemento que torna mais difícil a tarefa do jornalismo profissional no país. Uma das primeiras a denunciar a estratégia de disparos em massa do então candidato Bolsonaro, Mello avalia que, comparativamente com 2018, quando o assunto surpreendeu a todos, agora "temos uma infinidade de blogs e sites governistas que funcionam como braço de propaganda do governo, sites e blogs de extrema-direita, alguns que emulam sites noticiosos".

A jornalista resume o modus operandi desses grupos que atuam em conjunto, potencializando o poder de alcance e de estrago sobre as relações sociais: "Eles empacotam as notícias ou de uma forma que beneficie o governo ou mesmo com desinformação, descontextualizando e espalhando notícia falsa".

Para ela, não há dúvida de que se trata de um "ecossistema usado para corroborar as mensagens e as campanhas de desinformação que estão tentando emplacar" a partir de um centro de comando com a finalidade expressa de desequilibrar ou corroer o tecido democrático.

Essa mudança, elas concordam, impõe um novo desafio: acompanhar a produção e disseminação da desinformação não apenas mais de perto, mas a partir de uma variedade de ferramentas, algumas das quais se notabilizam por dificultar o trabalho de monitoramento em si, como é o caso do Telegram.

"O Whatsapp ainda é dominante", analisa Mello, "mas o Telegram cresceu muito, inclusive por incentivo do presidente Jair Bolsonaro e de aliados que estimulam os apoiadores a migrarem para lá", tirando proveito da total ausência de moderação no aplicativo.

"O Whatsapp fez mudanças no produto, adotou canais de denúncia de desinformação. Já o Telegram não tem nada disso e não tem nenhuma interlocução com nenhuma autoridade. O espírito do aplicativo é esse, por isso foi abraçado pela extrema-direita", diz a jornalista.

Nesse cenário, as instituições estão prontas para responder a esse desafio, entre elas o jornalismo, a sociedade civil e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário? Recuero e Mello dão respostas diferentes.

"Considero que as instituições conhecem mais a desinformação, mas acho que a gente ainda tem um esforço público muito pobre, no sentido de lutar contra a desinformação", opina Recuero, para quem a questão da vacinação é caso emblemático.

"A gente está vendo que tem muitos estados no Brasil onde a vacinação ainda está baixa e onde as pessoas não retornam para a segunda dose. Ainda há muita desinformação, muitas pessoas não se vacinaram. Acho que a gente ainda está fazendo isso institucionalmente de modo muito modesto", aponta.

Mello acredita que "as instituições estão mais conscientes", principalmente depois de "algumas mudanças em relação ao TSE", a quem cabe apurar e aplicar sanções a candidatos que se valham de desinformação durante a campanha eleitoral.

"Em 2019", afirma a jornalista, "o TSE adotou uma resolução dizendo que era proibido o uso de disparos em massa pelo Whatsapp e neste ano tivemos decisão do TSE que resolveu não cassar a chapa de Jair Bolsonaro e Mourão, mas estabeleceu uma jurisprudência dizendo que quem usar isso poderá ter a chapa cassada".

Esses precedentes são importantes, ela ressalta, mas "não está totalmente claro como vão provar que houve dano suficiente para merecer uma cassação ou impugnação de candidatura".

Publicado originalmente no portal O Povo Online

Leia também:

Como funciona o processo de produzir desinformação

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