3 de março de 2019

O terror está de volta Denise Assis

Lula abraçado pela família em velório do neto (Foto: Ricardo Stucket)
Há momentos em que o impacto da realidade é tamanho que nos tira o ânimo para fazer o que deve ser feito: escrever. Foi disso que vivi uma vida, foi isto que sempre fiz. Hoje, quando o país mais uma vez se viu diante de um derrame de bílis continental, desta gente que colocou em Brasília alguém que os ensinou e os incentivou a odiar, ficamos acossados, perplexos, doloridos, em estado de letargia. Quer dizer, falo por mim e alguns amigos que deixaram escapar queixas semelhantes.

Eis que Ricardo Kotscho, do alto do seu talento e da sua experiência, moveu as teclas para confessar a mesma dificuldade. Mas foi até o fim. Fez o seu dever de casa, como todos os que vivem da escrita e possuem um espaço para expor ideias e sentimentos. Segui o seu exemplo de determinação e cá estou à frente do meu teclado.

Kotscho, que sempre esteve próximo dos Silva, me trouxe subsídios, descrevendo o que viu lá dentro, no velório. As informações do colega, mais a foto acima, levaram-me a um passado não muito distante e, infelizmente, cada vez mais ameaçador. À medida que lia o seu texto, com o relato do ambiente do velório do pequeno Arthur, veio à minha mente a entrevista que gravei com D. Avelina, mãe de Marilena Villas Boas, a militante do MR-8, morta pela repressão, em uma rua sem saída (Rua Niquelândia) em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, na madrugada de 2 de abril de 1971, aos 22 anos.

O corpo de Marilena estava pronto para ser enterrado como indigente, em caixão lacrado, quando uma denúncia anônima avisou à família. Seu pai, o Dr. Feliciano, era médico e na mesma hora partiu para o Hospital Central do Exército (HCE), onde resgatou o corpo da filha para dar-lhe um enterro decente. Durante a conversa com D. Avelina, pude perceber a força daquela mãe, que só deixou aflorar a emoção quando relatou o velório da filha. 

A família em torno do caixão, cercada por agentes e homens armados de metralhadoras, que com a simples presença os intimidava e os inibia de externar a dor. Ainda assim, Avelina afastou as flores que cobria o corpo da filha, para se certificar do seu estado. Tantos anos depois, relembrou detalhes. Os cabelos, que sempre conservou longos, cortado à faca; os braços cobertos de hematomas e mordidas, as unhas arrancadas.

A cena de intimidação foi repetida no velório de Arthur, um menino de apenas 7 anos, deitado imóvel no caixão, vitimado pela meningite avassaladora que o ceifou da família em horas, não oferecia perigo. O “perigo” estava postado ao seu lado, devastado por uma dor inimaginável. O avô, e ex-presidente, Lula da Silva, de 73 anos, sucumbido pela perda.

Filho de uma analfabeta, desprovido de diplomas, vindo dos cafundós desse país desigual e injusto, ele arrastou espontaneamente para os espaços do cemitério Jardim da Colina, em São Bernardo do Campo, uma multidão calculada em cinco mil pessoas. Ali, no recinto onde jazia o corpo de Arthur, as armas eram alegorias desnecessárias. Vá lá que no seu comboio se justificassem, para dar-lhe “segurança”, mas ali? Onde só havia a família e sua perda?

A multidão foi lá, não para ver “um larápio posando de coitado”, como descreveu o homem de aço, Eduardo Bolsonaro. (Sim, homem. Vamos parar de transformá-los em “meninos”). Esses milhares de cidadãos foram, isto sim, demonstrar a solidariedade e o amor que a “famíglia” que chegou ao Planalto desconhece, porque “mito” o povo constrói e escolhe, não é forjado nas redes sociais.

Os Bolsonaros podem ter chegado lá pelo voto, mas estão impondo ao país o mesmo terror da ditadura, que conteve, pelas armas, as lágrimas de D. Avelina. Só não puderam conter a onda de amor e conforto vindos do pátio do cemitério. Porque a força desses sentimentos desconhece o poder das armas.

Publicado originalmente no portal O Cafezinho

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