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| O jornalista Vladimir Herzog assassinado sob tortura, nas dependências do DOI-Codi em 1975 (Foto: Reprodução/IVH) |
O evento deste ano tem o mesmo peso histórico daquele que reuniu mais de 8 mil pessoas, no auge da repressão imposta pelo regime dos generais. Com direção litúrgica de Dom Odilo Scherer, participação da reverenda Anita Wright — filha do pastor Jaime Wright, que codirigiu o culto ecunêmico de cinco décadas atrás — e do rabino Ruben Sternschein — pela comunidade judaica estava o rabino Henry Sobel —, o encontro homenageia não apenas Vlado, mas, também, todas as famílias que perderam pais, mães, filhos, filhas, irmãos e primos para a brutalidade da ditadura. Herzog foi o primeiro preso político assassinado que teve enterro público, gesto que deu início à derrubada do regime.
No evento de hoje, com início previsto para as 19h, o Coro Luther King fará a abertura musical, seguido de manifestações de fé e memória. Está prevista, também, a leitura da carta escrita por Zora Herzog, mãe de Vlado, interpretada pela atriz Fernanda Montenegro, em tributo às mães e viúvas que transformaram a dor em luta por justiça.
Ivo Herzog, filho e diretor do Instituto Vladimir Herzog, afirmou que os 50 anos marcam tanto a tragédia pessoal quanto o significado histórico da resistência. "Chegar a esta semana, em que completam-se 50 anos do assassinato do meu pai, é revisitar, além de uma tragédia familiar, um capítulo decisivo da história do Brasil. Foram cinco décadas de silêncio, de luta, de busca por verdade e justiça", disse, afirmando que apesar do reconhecimento, ainda existem feridas abertas.
"Ao longo desse tempo, muita coisa mudou. O Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade, a sociedade amadureceu. Mas ainda há feridas abertas — ninguém foi responsabilizado e a impunidade segue sendo uma sombra sobre o país", lamenta.
A data é carregada de emoção e simbolismo. O assassinato de Herzog, em 25 de outubro de 1975, foi o ponto de inflexão de um regime brutal. Sua morte despertou o país, fez ruir a narrativa oficial do "suicídio" e revelou as entranhas da violência de Estado. "Esta semana é carregada de emoção e de sentido histórico. É uma oportunidade de olhar para trás e entender o quanto custou recuperar a liberdade que, hoje, ainda tentamos preservar. O ato (de hoje) é uma celebração da coragem dos que resistiram, das famílias que nunca desistiram e de todos que acreditam que a memória é a base da democracia", frisa Ivo.
Para o jornalista Sérgio Gomes, ex-preso político e amigo de Vlado, foi depois da realização da missa de sétimo dia que o país retomou o fôlego para lutar contra a ditadura. "Vladimir Herzog foi o primeiro preso político assassinado que teve um enterro público. Todos os outros, até então, desapareceram: sumiram com os corpos, não entregaram às famílias, mas aquele ato de fé, que reuniu mais de oito mil pessoas, se transformou num novo fôlego de esperança no Brasil. Foi dali que nasceu o ânimo da reconquista democrática", relembra.
Aos 76 anos, Gomes é, atualmente, integrante do Conselho Deliberativo do instituto que leva o nome do jornalista. Foi próximo de Vlado e esteve detido por seis meses, no mesmo ano da morte do amigo. Ele falou da importância do ato ecumênico, afirmando que, apesar de ser um tema triste, não pode ser apagado da memória.
"Fiquei preso por seis meses e fui torturado no primeiro mês. A minha história, a de Vlado, e de tantos outros não podem cair no esquecimento. A ditadura existiu, deixou marcas e deve servir como lição para que futuras gerações não cometam o mesmo erro", observa.
Para a cerimônia de hoje à noite, foram convidados amigos e companheiros de redação, parlamentares e ministros, repetindo o gesto de 1975, quando o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright conduziram uma missa histórica em protesto contra a tortura e a mentira do Estado, que tentou emplacar junto à opinião pública a mentira de que Vlado cometera suicídio.
Do
depoimento a farsa da foto
Vlado foi chamado a depor em 24 de outubro de 1975, acusado de manter vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). No dia seguinte, apresentou-se voluntariamente para esclarecer as acusações. Nunca mais foi visto vivo. Na tarde de 25 de outubro de 1975, após horas de tortura, foi assassinado nas dependências do DOI-Codi de São Paulo.
Poucas horas depois, o regime divulgou a versão de que o jornalista teria se suicidado com o próprio cinto, ao distribuir uma fotografia encenada que se tornaria um símbolo cruel da ditadura. A farsa do "suicídio" foi rapidamente desmontada por colegas e parentes. A imagem de Vlado pendurado, sem vida, tornou-se a prova concreta do horror da repressão.
O impacto foi imediato. A morte de Vlado rompeu a barreira do medo e fez o regime recuar. No ano seguinte, o presidente Ernesto Geisel afastou o comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Melo, e iniciou o processo que levaria à abertura política. O episódio extrapolou o sofrimento da família e tornou-se uma agenda social. Em 1978, o juiz Márcio José de Moraes condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte do jornalista, expondo a farsa do suposto suicídio.
Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu o assassinato como crime de Estado. Em 2009, o governo brasileiro admitiu a responsabilidade pelo homicídio e, em 2012, o atestado de óbito foi retificado para registrar a verdadeira causa: "lesões e maus-tratos sofridos em dependência do DOI-Codi". Cinquenta anos depois, o jornalista foi reconhecido como anistiado político post mortem, firmando acordo judicial com a família.
Nascido Vlado Herzog, em 27 de junho de 1937, na cidade de Osijek — então pertencente à Iugoslávia e hoje parte do território da Croácia —, cresceu em uma família judia que fugia da perseguição nazista. Filho de Zigmund e Zora Herzog, atravessou os anos de guerra vivendo nas cidades italianas de Fonzaso, Fermo e Magliano di Tenna, até que, em 1946, os Herzog embarcaram rumo ao Brasil. Desembarcaram no Rio de Janeiro.
Alguns anos depois, mudou-se para São Paulo e foi estudar no Colégio Estadual Roosevelt. Vlado ingressou no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), em 1957, formando-se em 1962. Aos 21 anos, passou a trabalhar n'O Estado de S.Paulo, escrevendo reportagens culturais e políticas.
Em 1965, foi contratado pela BBC de Londres, onde atuou por três anos no serviço brasileiro da emissora. Ao retornar ao Brasil, em 1968, viveu o impacto de um país mergulhado na censura e no medo. Na década de 1970, Herzog passou pela TV Excelsior e pela TV Universitária de Pernambuco, até chegar à TV Cultura de São Paulo. Em 1975, assumiu a Diretoria de Jornalismo da emissora. Foi o suficiente para incomodar setores do regime militar.
O historiador Marcos Cordeiro Pires, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), afirma que o assassinato de Vlado foi o retrato de um Brasil sem liberdades democráticas. "Quando foi torturado e assassinado, ocorreu num momento em que a ditadura militar já havia vencido a resistência armada e começou a perseguir as lideranças civis que ainda representavam o pensamento crítico. O caso Herzog foi o ponto de virada: a repressão perdeu o controle da narrativa", explicou.
Segundo ele, a morte de Herzog rompeu o medo e uniu setores até então silenciados. "A missa ecumênica na Sé foi um ato de fé e também de resistência. Ali, Dom Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel e Jaime Wright mostraram que a coragem moral pode ser mais forte do que as armas. O gesto teve impacto direto no regime: pouco depois, o presidente Geisel exonerou o comandante do II Exército e interveio na repressão. Foi o começo do fim da impunidade militar", lembra.
Mas o historiador alerta: o autoritarismo nunca desapareceu completamente. "É fundamental lembrar o passado para não repetirmos os erros sobre os verdugos de ontem e os seus admiradores de hoje. Ainda há setores que glorificam torturadores e relativizam a violência de Estado. Esse é o grande perigo do nosso tempo. O esquecimento é o terreno fértil da barbárie", alerta.
André Porto Ancona Lopez, historiador e professor da Universidade de Brasília (UnB), ressalta que o caso Herzog permanece vivo como um espelho das estruturas autoritárias que prevalecem na sociedade. Ele reflete sobre a banalização da mentira e o papel das redes sociais numa canhestra tentativa de revisionismo histórico pela extrema-direita.
"A gente vive um tempo em que o negacionismo é performático. As pessoas dizem que nunca houve ditadura, que o golpe de 1964 foi revolução, e disseminam falsidades sem conhecer os fatos. Pergunto: quantos dos que opinam sobre isso assistiram ao filme Ainda Estou Aqui, sobre o caso Rubens Paiva? A maioria dos meus alunos não viu. Estamos diante de uma geração que perdeu o contato com a experiência histórica", lamenta.
O historiador também questiona o discurso de "polarização" política usado para relativizar a tensão democrática. "A ideia de polarização é uma falácia. Ela vem de um campo que perdeu protagonismo e tenta criar um espantalho para deslegitimar o avanço democrático. Dizem que o país está dividido, mas o que temos é o curso natural da história, o amadurecimento da democracia. Confundir divergência com ameaça é o primeiro passo para justificar o autoritarismo", critica.
Publicado
originalmente no Correio Braziliense
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