27 de junho de 2019

O privilégio de fazer barulho por Érico Firmo

Templos religiosos deixam de ter qualquer parâmetro quanto a barulho em Fortaleza (Foto: Divulgação)
O Código da Cidade é uma legislação urbanística e, do ponto de vista urbano, não existe justificativa para a emenda que deixa templos religiosos de fora da lei do silêncio. Igrejas e congêneres estão livres para fazer barulho quando bem entenderem, sem restrição de horário. Não podem ser fiscalizados, não podem ser punidos.

A demanda para excluir templos religiosos da legislação que disciplina o barulho existe porque há abusos, há reclamações. Muitas igrejas produzem muito barulho, em horários inconvenientes, em vizinhanças residenciais. Perto da residência de idosos, de pessoas doentes. Isolamento acústico é raro e alguns pregadores são um tanto estrepitosos.

Parlamentares argumentaram sobre a função social das igrejas, a importância delas. Ora, não precisa fazer barulho em horário inconveniente para cumprir função social. Aliás, vale lembrar iniciativa que teve, na década passada, a professora Antoneuda Santiago. Ao sofrer com o barulho de uma igreja vizinha a ela, na avenida José Bastos, colocou a faixa: Deus não é surdo, orem baixo! Respeitem o sossego dos outros, respeitem a lei".

Deus segue sem ser surdo e o barulho continua desnecessário para chegar a ele. Aliás, tenho meu credo e prefiro o silêncio à zuada para entrar em sintonia com Deus. Mas, como muitas igrejas não respeitaram a regra, os vereadores de Fortaleza parecem ter achado mais adequado mudar a lei. É um atraso, coisa de cidade provinciana, obscurantista e sem regra.

Para além do privilégio

Se templos religiosos podem fazer barulho livremente por sua importância social, não será descabido se um a casa de forró amanhã reivindicar o mesmo direito pela relevância do ponto de vista da cultura popular e das tradições.

Aliás, vale lembrar que templo religioso abrange muita coisa. Se um terreiro de Candomblé resolve trazer o Ilê Aiyê, ou simplesmente faz um festejo ao som dos tambores até alta madrugada, estará amparado pela lei.

As razões dos vereadores

O voto religioso tem muita força política. Um exemplo: Luiz Inácio Lula da Silva (PT) só conseguiu se eleger presidente, depois de três derrotas, quando fechou acordo com o PL, então partido da Igreja Universal, que indicou seu vice. Até 2014, segmentos poderosos dos evangélicos apoiaram o PT e o partido venceu todas as eleições presidenciais. Em 2018, evangélicos passaram a apontar o PT - no qual muitos votaram por quatro eleições - como encarnação do anticristo e foram determinantes para eleger Jair Bolsonaro (PSL). Essa força política está presente em Fortaleza. Vereadores sabem disso e muitos se elegem com esses votos.

O apoio é poderoso e a rejeição é mais ainda. Muitos podem até não votar em quem o líder religioso pede. Mas, são vários os que evitam aquele em quem o guia espiritual orientam a não votarem.

A força desse segmento leva os vereadores a concederem esse tipo de privilégio, inexplicável do ponto de vista da cidade.

É improvável que a maioria deles tenha vizinho de casa algum templo fazendo barulho em hora inadequada.

Tentativa de regramento

Deixar a questão sem regra nenhuma foi percebido como evidente excesso. Daí um grupo de vereadores já articular apresentação de projeto de lei complementar para estabelecer o mínimo de parâmetros. Benigno Júnior (PSD), Gardel Rolim (PPL), Guilherme Sampaio (PT) e Iraguassú Filho (PDT) querem fixar ao menos um limite de decibéis, que poderá ser até maior que o normal - não pode é não haver nenhum, além da justiça divina. Também querem estabelecer horários.

Publicado originalmente no portal O Povo Online

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