20 de novembro de 2025

Consciência Negra: honrar a ancestralidade é autoafirmação e resistência

O Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quinta-feira, 20 de novembro (Foto: Fco Fontenele)

Entre os povos Akan, grupo étnico da África Ocidental, surgiu a filosofia Sankofa, simbolizada por um pássaro que voa olhando para trás. O pássaro carrega um ovo no bico, o futuro. A imagem vem do provérbio “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”, usado para ensinar que ninguém caminha para o futuro sem reconhecer o próprio passado e que a memória é o que sustenta a continuidade de um povo.

É a partir disso que se compreende o conceito de ancestralidade. No senso comum, costuma-se associá-lo apenas à ideia de linhagem biológica, uma árvore genealógica que conecta filhos, pais, avós e bisavós. Mas, para a população negra e para as comunidades tradicionais, a ancestralidade é uma dimensão simbólica e uma memória viva.

O que seus ancestrais viveram — seus saberes, rituais, modo de viver, formas de resistência e a própria oralidade — continua atravessando o tempo e se transmitindo de geração em geração. É a partir dessa relação com o passado que se define o rumo do futuro.

Por isso, a ancestralidade para o povo negro é também um ato de identidade, de pertencimento e de resistência. É o que explica Wanessa Brandão, doutoranda em Sociologia e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Afirmativa e Territorial do Instituto Mirante de Cultura e Arte.

“A ancestralidade todas as pessoas têm, só que, para a pessoa negra viver a ancestralidade, ela precisa minimamente ter consciência negra. Acho que é por isso que o Dia da Consciência Negra é importante: para a gente fazer essa reflexão”, afirma Wanessa, que também é membro do Conselho de Leitores do O POVO.

O Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quinta-feira, 20 de novembro, surgiu da necessidade de valorizar a luta e a contribuição da população negra na formação do Brasil. A data é uma homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, que morreu nesse dia em 1695. A data foi oficializada nacionalmente pela Lei nº 12.519, de 2011.

No Quilombo do Cumbe, comunidade pesqueira quilombola situada em Aracati, no Litoral Leste, a memória dos que vieram antes está entranhada na água salgada e nas raízes do manguezal. João Luis, líder quilombola mais conhecido como João do Cumbe, destaca que quilombo teria se formado a partir de negros libertos que trabalhavam em engenhos da região.

“Com o processo de abolição da escravidão no Ceará, em 1884, população escravizada que trabalhava nesse sítio ficou, como a gente diz, 'sem eira nem beira'. Essa população constituiu suas habitações nas áreas de manguezal, que, na época, não tinham importância econômica”, conta.

Ele destaca essa relação como parte central da identidade local. “A maior parte das nossas práticas culturais e da nossa ancestralidade remete à relação que a comunidade estabelece com manguezal”, explica.

Essa conexão é celebrada todos os anos na Festa do Mangue do Cumbe, realizada em outubro. Durante três dias, moradores, pesquisadores, estudantes e militantes, se reúnem para celebrar o mangue, suas comidas, seus ritmos e sua espiritualidade.

É cultura, mas também resistência. “A festa fortalece os processos organizativos da comunidade e cria uma rede de solidariedade para a preservação do território tradicional quilombola pesqueiro de uso comunitário”, afirma João.

No Ceará, como lembra João, a ideia de que “não tem negro” acaba apagando a existência das comunidades quilombolas. “Porém, há uma grande contradição nisso, porque é justamente o Estado que se orgulha de ter sido a primeira província do Brasil a abolir a escravidão”.

De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 24 mil pessoas se identificaram como quilombolas no Ceará. Conforme o governo do Estado, o Estado tem 123 comunidades quilombolas, com mais de 60 reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, órgão federal que certifica comunidades quilombolas.

A pesquisadora Wanessa Brandão explica que a conexão com a ancestralidade negra não depende, necessariamente, de vínculos territoriais.

“Em comunidades quilombolas, você acaba sempre reverenciando quem veio antes para saber para onde vai. Mas se você é uma pessoa negra, da cidade, da periferia, e tem consciência racial, você vai conseguir compreender como essa comunidade também te forjou na sua cultura. Se eu tenho consciência de quem sou enquanto pessoa negra, eu tenho consciência de como reverenciar meus ancestrais”, destaca.

A dificuldade de reconhecer-se como negro e de assumir a própria ancestralidade está diretamente ligada ao apagamento histórico. Hilário Ferreira, doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador da cultura negra cearense, destaca que, desde o período escravocrata, a imposição cultural, a marginalização e até expressões criadas pelos portugueses contribuíram para animalizar pessoas negras e indígenas.

“‘Mulato’ (de mula) e ‘pardo’ (de pardal), por exemplo. No pós-abolição, a estrutura social se preserva com o objetivo de diminuir e subjugar as pessoas não brancas. Aí surgem no cotidiano expressões como “moreno”, “moreninho”, “cafuso”, mas não “negro”. Essa diversidade de termos faz com que muitas pessoas não queiram se identificar como negras, porque tudo que é associado ao negro é tratado como negativo”, destaca.

Conforme o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 64,7% da população do Ceará declarou se identificar como parda. Outros 27,9% se declararam pessoas brancas e apenas 6,8% se identificaram como pretas.

Ele explica que, nesse processo, surgem pessoas inconformadas que começam a se organizar, pesquisar e se conectar com outras pessoas ou com a literatura sobre ancestralidade. Elas encontram rituais que as ajudam a lembrar e a reviver essa ancestralidade no presente.

Quando a fé desperta a ancestralidade

É no encontro com a fé que muitas pessoas honram sua ancestralidade. Segundo o professor Hilário Ferreira, há uma ligação profunda entre as divindades religiosas e as etnias africanas.

“Há divindades ligadas a diferentes povos que vieram, na condição de escravizados, para o Brasil, e que marcam o que chamamos hoje de Candomblé. Por exemplo: os Orixás são do Candomblé iorubá, vindo da Nigéria. Os Inkisi são divindades ligados aos povos do Congo e de Angola. Já os Voduns são divindades ligadas aos povos do Reino de Aladá e de Jebú (ou Jubenin)”, detalha.

Para homens e mulheres negras, que crescem em uma sociedade marcada pelo racismo, a revelação de ser filho(a) de um Orixá pode ser revolucionária.

“Quando uma pessoa vai a um terreiro e é dito que ela é filha de Oxum, de Xangô, de algum orixá, a ancestralidade retorna. Descobrir que a divindade que o protege, por exemplo, foi rei de Oyó, um reino africano. Isso desperta autoestima. O Candomblé é uma religião que cumpre uma função de identidade positiva, potencializadora”, explica.

É nesse ponto que a espiritualidade para muitos se torna ferramenta de enfrentamento. “Uma das principais ações do racismo é a produção da inferioridade, e a inferioridade é a aceitação da situação que lhe é imposta. Quando você descobre quem você é, quando passa a se amar, não existe isso de permitir que alguém o desrespeite. Você luta contra isso.”

Dados do Censo Demográfico do IBGE de 2022 mostram que o número de praticantes do candomblé e umbanda mais do que triplicou dentro de um intervalo de 12 anos no Ceará, saltando de 7.609 em 2010 para 27.861 em 2022.

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Indicações

Livro: O livro africano sem título: Cosmologia dos Bantu-Kongo, de Bunseki Fu-Kiau

Filme Documentário: Quem Te Penteia? (2018), da Naná Prudêncio

Filme Documentário: Ôrí (1989), de Raquel Gerber

Filme de ficção: A Mulher Rei (2022), de Gina Prince-Bythewood (Colaborou Eduarda Porfírio)

Publicado originalmente no portal O Povo +

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