17 de março de 2018

De onde vem a ideia dos direitos humanos como defesa de bandidos? por Cassiano Martines Bovo


No Brasil, dentre o amplo espectro de pautas e temas abarcados pelos direitos humanos, ancorados fundamentalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é apenas sobre os ativistas de um segmento desse conjunto que recai a incompreensão de boa parte da sociedade; trata-se daqueles que lutam contra os abusos cometidos por policiais e agentes do sistema de segurança pública em geral, além das questões relacionadas ao sistema carcerário.

Carregam pesado fardo pela estigmatização que sofrem; sobre eles recai a cotidianamente vivenciada associação dos direitos humanos como defesa de bandidos; são perseguidos por enunciados do tipo “direitos humanos para humanos direitos”, “direitos dos manos”, “bandido bom é bandido morto”, “por que vocês não visitam as famílias das vítimas?”, dentre outros, proferidos não só por agentes da segurança pública, mas também pela maioria da população, inclusive por pessoas de elevado nível de instrução.

Como as pessoas que sofrem essas violações são vistas como criminosas (embora nem sempre o sejam), e geralmente moradores pobres das periferias das cidades, parcela significativa da sociedade não se conforma que possam ter direitos, como está na Constituição; acreditam, inclusive, que devam ser torturadas e executadas.

Como consequência, brutal carga de ódio recai sobre os ativistas que lutam contra esses arbítrios, como se tivessem que expiar pelos males da sociedade. Isso não acontece com ativistas das demais pautas no âmbito dos direitos humanos (por ex. feministas, LGBT, indígenas, racismo, saúde, educação, moradia, trabalho etc.), que enfrentam outras agruras e perseguições.

O que se vê na sociedade brasileira é uma leitura dos direitos humanos fora de sua concepção jus naturalista elementar, baseada na Declaração Universal e incorporada na Constituição (artigos “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), que é a ideia de que qualquer ser humano, seja quem for, é portador de todos os direitos humanos[3], sem qualquer hierarquização (princípios da inalienabilidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos).

O preocupante, e com todos os riscos para uma sociedade que se quer democrática, é que é justamente o contrário disso que pensa parcela significativa da população brasileira.

Essa peculiar concepção mira a ação dos indivíduos (“mas, o que ele fez?”) e não o indivíduo em si, portador de direitos inalienáveis, pelo simples fato de ser humano.

O que aconteceu com o país para se chegar a essa situação?

Como se difundiu uma peculiar concepção de direitos humanos, invertida, restrita, hierárquica, e que fundamentalmente persegue defensores de direitos humanos e os iguala a defensores de bandidos? Como uma positividade discursiva de tal potência pôde prosperar em nossa sociedade? Como se operou essa “associação negativa” em relação a um grupo de ativistas dentro de um todo maior de atores sociais?

Entendo que as respostas a essas questões podem ser encontradas no artigo “Direitos Humanos ou “privilégios de bandidos”: desventuras da democratização brasileira”, de autoria de Teresa Pires do Rio Caldeira, por meio da leitura dos acontecimentos de um período crucial de nossa história: a segunda metade dos 1970 e a primeira dos 1980.

A autora lembra que na segunda metade dos 1970 dois movimentos emergiram na sociedade brasileira: a luta pela anistia aos presos políticos da ditadura, assim como as violações de direitos decorrentes dessa condição, e os chamados movimentos sociais, sobretudo nas periferias das grandes cidades, baseados nas lutas sindicais, habitação, saúde, educação, carestia etc., chamados também de direitos coletivos (na verdade, a consolidação do segundo tipo de movimento se deu nos anos 1980).

Caldeira (1991) aponta que a luta pelas violações de direitos de prisioneiros comuns e nas abordagens policiais etc., vem no bojo desses movimentos, como um alargamento do catálogo de direitos no país.

Interessante perceber que parcela dos ativistas que vão atuar nessa luta são os mesmos que atuaram a favor dos presos políticos, mas se imaginavam que seria apenas mudar o alvo dos sujeitos violados, se enganaram; as dificuldades e diferenças foram enormes.

A recepção da população em geral em relação à defesa de presos comuns foi totalmente diferente daquela dos presos políticos. Por quê?

De acordo com a autora (Caldeira, 1991), para a maioria da sociedade, se o crime cometido pelo preso político era discutível (e muitas vezes este provinha de famílias de classe média e até ricas), quando se trata do comum, não. Defender essas pessoas ultrapassou algum limiar intolerável, não assimilado pela maioria da população, mesmo que estivessem sofrendo violações, de acordo com a lei. Coisa que não aconteceu, na verdade, com os movimentos sociais da época, embora já sofressem ataques de setores conservadores da sociedade.

Então, a pergunta que deve ser feita é: por que essa recepção foi tão diferente?

A autora (Caldeira, 1991) lembra o papel determinante de parte da mídia como importante veiculadora de um discurso (“defender essas pessoas é defender bandidos”, “não se deve gastar dinheiro público com eles” etc. quando não se chegava a pedir a violência e até a morte) associado, em geral, a ideias de impunidade, além de exageros nas narrativas (impressão do perigo constante, sensação de medo e insegurança), ideias mentirosas sobre as condições carcerárias etc.

Assim, programas de TV, e sobretudo de rádio (por ex. o de Afanasio Jazadji),e jornais impressos (até mesmo O Estado de S. Paulo, em algumas edições), além das falas de autoridades policiais (por ex. o Coronel Erasmo Dias) atuaram como importantes operadores (numa alusão, de minha responsabilidade, à abordagem discursiva de Michel Foucault; a legitimidade de quem fala) desse discurso, a martelar a cabeça das pessoas diariamente.

A sociedade “comprou” esse discurso e sua força é atestada pelo sucesso das duas figuras mencionadas em pleitos legislativos, como candidatos mais votados.

Esses discursos, lembra a autora (Caldeira, 1991), constantemente atacavam o governo, que tinha aceito o desafio de melhorar as condições carcerárias, dialogar com prisioneiros e sobretudo tentar alterar a forma de atuação das polícias (não é à toa que muitas dessas falas contra os direitos humanos venham de policiais), herdeiras da atuação no contexto ditatorial (lembremos que o Secretário da Justiça do Governo de São Paulo, José Carlos Dias, era um ativista de direitos humanos).

Os operadores desse discurso associaram essas condutas ao aumento da violência, da criminalidade, inclusive como efeitos indesejáveis da democratização da sociedade (a ideia de que a mudança está piorando a sociedade…).

Porém, o aspecto crucial, abordado pela autora (Caldeira, 1991), é a ideia, recorrente nesses discursos, do privilégio. A sua tese aponta que a veiculação discursiva levada a cabo por esses operadores foi a de que lutar pelos direitos dessas pessoas é dar privilégios a bandidos, gastar com recursos pagos pelos cidadãos (a ideia de que defender bandidos é luxo), além de alusões à impunidade.

Como decorrência, se observa o desprestígio dos direitos civis (liberdade individuais) em relação aos direitos políticos e sociais que foi se disseminando na sociedade, como se vê até hoje. Assim, ”Uma vez feita a associação direitos humanos = privilégio para bandidos, foi fácil destruir a legitimidade dos direitos que estavam sendo reivindicados, e dos seus defensores, tratados como “protetores de bandidos”.

Então, por que esses operadores vomitaram esse discurso tão vigoroso contra determinados atores dos direitos humanos?

A tese da autora (Caldeira, 1991) é a de que se tratou de uma tentativa de resistência contra as mudanças que se estavam operando (ou se tentando) na sociedade, em várias áreas, pressões e movimentos. Entendo que a seguinte colocação é bastante elucidativa em relação à essência do processo:

“As falas sobre a violência e a insegurança sugerem uma preocupação com o rompimento de um equilíbrio, com a mudança de lugares sociais e, portanto, de privilégios. Não é difícil entrever por trás do discurso contra os direitos humanos e sobre a insegurança gerada pelo crime o delineamento de um diagnóstico de que tudo está mudando para pior, de que as pessoas já não se comportam como o esperado, que pobres querem direitos (privilégios, é bom lembrar) e, supremo abuso, prova de total desordem, quer se dar até direitos para bandidos. Pode-se perguntar, contudo, se uma das coisas que se pretendia obter com a exploração desse “absurdo” não seria a afirmação dos privilégios daqueles que articulavam o discurso”.

Quer dizer, justamente a ideia de privilégios a bandidos, usada no discurso contra os direitos humanos, tinha como objetivo conter a perda de privilégios de alguns atores sociais, que poderiam ocorrer com as mudanças na sociedade.

Independentemente dos argumentos da autora (Caldeira, 1991), observa-se que o discurso contra os direitos humanos foi ganhando força e se consolidou, sobretudo na década dos 1990, sendo usado por vários atores sociais, em diferentes contextos, com diversos enunciados, mas mantendo sua matriz fundante, sem rupturas e descontinuidades, com um vigor e aceitação impressionantes, como uma prática de nossa sociedade que causa espanto a muitos estrangeiros.

Prova desse vigor foi a recepção da atuação policial pela sociedade em alguns eventos, tais como o Massacre do Carandiru (1992), chacinas da Candelária e Vigário Geral (ambas em 1993), dentre outros, em que se poderia imaginar o questionamento e indignação contra essa atuação; contrariamente, receberam os aplausos de parcela significativa da população.

Lembremos, aliás, que o Cel. Ubiratan Guimarães, responsável pela invasão no Carandiru, se elegeu com largo número de votos, usando a cédula n. 111 (em alusão ao número de mortos no massacre).

Publicado originalmente no portal Justificando

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