20 de julho de 2011

Os evangelhos apócrifos


Folha de um dos  apócrifos
de Nag Hammadi
"Quem não conheceu a si mesmo não conhece nada, mas quem se conheceu veio a conhecer simultaneamente a profundidade de todas as coisas."

A frase acima é atribuída a Jesus Cristo, mas não adianta ir procurá-la na Bíblia. Ela não está nos Evangelhos de Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos relatos da vida de Jesus que a Igreja considera autênticos.

A citação faz parte de outro evangelho, o de Tomé, que, assim como outras centenas de textos semelhantes, foi escrito por alguns dos primeiros cristãos, entre os séculos 1 e 3 da nossa era.

Ele foi cultuado por muito tempo. Até que, em 325, o imperador romano Constantino, em Nicéia, na atual Turquia, definiu que entre os inúmeros relatos sobre a vinda de Cristo, só quatro eram "inspirados" pelo filho de Deus: surgiram os evangelhos canônicos.

Os outros eram apócrifos, de legitimidade duvidosa e foram proibidos. Quem teimou em segui-los passou a ser considerado herege. Muitos foram excomungados, perseguidos e presos. A maioria dos apócrifos acabou destruída.

O Evangelho de Tomé, o de Filipe e o de Maria Madalena  escaparam da destruição graças a um egípcio anônimo, que, no século 4, escondeu num jarro de barro cópias manuscritas na língua copta desses textos banidos pela Igreja Romana.

O jarro ficou 1.600 anos sob a areia do deserto, até ser achado por um grupo de beduínos, em 1945, perto da cidade egípcia de Nag Hammadi. Os textos foram traduzidos e chegaram ao conhecimento dos cristãos do mundo.

Hoje, milhares de pessoas professam suas crenças com base nos apócrifos. Por que que esse interesse moderno nos apócrifos?

Talvez a principal razão seja o fato de que eles revelam mais sobre Jesus enquanto ser humano: vários dos apócrifos trazem passagens reveladoras para aqueles que tentam enxergar o homem por trás do Deus.

Alguns apócrifos não fazem referência alguma à virgindade da mãe de Jesus, um dos dogmas dos canônicos.

Além disso, vários apócrifos trazem o retrato de um Jesus diferente do que conhecemos: um Jesus que valoriza o conhecimento e o coloca no mesmo patamar da fé.

Na citação que abre este texto, atribuída a Jesus pelos apócrifos, evidencia-se a importância da sabedoria, e do autoconhecimento, conceitos totalmente ausentes nos canônicos, que só oferecem dois caminhos para a salvação: a fé e as boas ações.

Os apócrifos falam a um contingente que não pára de crescer nos tempos atuais: os ávidos por espiritualidade, mas desconfiados da religião.

Muitos apócrifos pregam também códigos de conduta menos rígidos que os do cristianismo tradicional.

Numa passagem do evangelho de Maria Madalena, Cristo diz: "eu não deixei nenhuma ordem senão a que eu lhe ordenei, e eu não lhe dei nenhuma lei, como fez o legislador, para que não sejas limitada por ela". Esse trecho parece contrariar a própria autoridade da Igreja.

Os vários apócrifos valorizam o papel da mulher: os evangelhos de Filipe e de Maria Madalena afirmam que esta recebia revelações privilegiadas do Salvador. "O Senhor amava Maria mais do que todos os discípulos e a beijou na boca repetidas vezes", afirma o Evangelho de Filipe.

Nos evangelhos canônicos todos somos pecadores e Cristo morreu na cruz para nos salvar: nós pecamos, ele morreu. Nos evangelhos de Tomé, Filipe e Maria Madalena não há uma só linha sobre o julgamento e a condenação de Jesus.

O cristianismo, no começo, não era um só. Pode-se dizer que os apócrifos são vestígios de cristianismos perdidos.

Os primeiros cristãos viviam em comunidades clandestinas, que se reuniam às escondidas nas periferias das cidades e que tinham pouco contato umas com as outras.

Essas comunidades eram lideradas muitas vezes por pessoas que conheceram Cristo ou pelos próprios apóstolos. Como Cristo não deixou nada escrito, coube a essas primeiras lideranças do cristianismo construir a religião.

É provável que os textos dos evangelhos tenham sido construídos a partir dos ensinamentos dos apóstolos, recolhidos por seus seguidores. Essas versões, em diversos textos, nem sempre concordavam umas com as outras.

Entre os primeiros grupos cristãos havia, por exemplo, os ebionitas, uma das seitas mais antigas. Eles se consideravam judeus e achavam que Jesus era o Salvador apenas do povo hebreu.

No outro extremo, estavam os marcionitas, para quem havia dois deuses. O primeiro deles seria mau, o deus dos judeus. Jesus seria o segundo, um deus bom, que teria surgido para nos liberar da divindade maligna. Esse cristianismo foi popular no começo do século 2, antes de ser condenado como heresia em 139.

Havia também os gnósticos, que tinham crenças aparentadas às dos marcionistas, mas acreditavam que o Deus bom influiu na criação e dotou cada ser humano de uma centelha divina, que nos dava a capacidade de despertar dessa imperfeição e conhecer a verdade através do conhecimento.

Havia ainda os seguidores de Tomé, que acreditavam na salvação pelo conhecimento, mas pregavam que a busca deste era individual: os tomesinos rejeitavam a hierarquia e, portanto, a Igreja.

Havia, finalmente, os seguidores de Paulo e os de Pedro, fortes especialmente em Roma, que não eram maiores nem mais representativos que os outros, mas, devido à proximidade com a burocracia que administrava o Império, eram mais organizados e hierarquizados e, ali, estava o embrião do que veio a ser mais tarde a Igreja Católica Romana.

As comunidades de Paulo e as de Pedro seguiam um certo conjunto de textos e rejeitava outros. Mas, ambos consideravam legítimos os evangelhos de Marcos, Matias, Lucas e João, que provavelmente são os mais antigos e menos controversos.

Em 312, o imperador Constantino se converteu ao cristianismo. Ele  administrava um império que era quase "universal", e queria também uma "Igreja universal": escolheu o cristianismo de Roma.

Quando, 13 anos depois, sob as ordens de Constantino, a Igreja se reuniu para decidir o que era o cristianismo, os bispos de Roma, mais organizados e com o apoio decisivo do imperador, se sobressaíram nas discussões.

O credo de Nicéia, que proclamou os evangelhos canônicos, passou a ser a doutrina oficial de todos os cristãos, e foram proibidos quaisquer outros textos que não fossem os de Lucas, Marcos, Mateus e João.

Entre os textos que foram proibidos, vários faziam parte das bibliotecas gnósticas. Acredita-se que os manuscritos de Nag Hammadi sejam tesouros salvos da biblioteca gnóstica do Mosteiro de São Pacômio, que ficava lá perto.

Ninguém sabe ao certo quantos evangelhos foram suprimidos. O que se sabe é que só quatro livros foram considerados "corretos". Apenas neles "o ensinamento das linhas de Deus é proclamado. Não acrescentem nada a eles, não deixem nada se afastar deles", dizia um decreto de um bispo de Alexandria.

Desde o encontro de Nicéia só haveria quatro evangelhos, e, pela primeira vez, um só cristianismo.

Compilado de matéria publicada na revista Superinteressante, assinada por Érica Montenegro

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